COMPENETRADO: ADJETIVO OU INTERJEIÇÃO?
Fred chega à tardinha em Piracuruca, região setentrional piauiense. Não encontra hotel. Sabe que os colegas, funcionários da empresa que representa, se acomodam numa república. São dez, ao todo, moças e rapazes.
Localiza a casa e é acolhido no pós-expediente da agência.
Passará trinta dias reformulando serviços naquela jurisdicionada.
Cedem-lhe, temporariamente, a cama de um colega, paraibano, que se encontra em descanso de férias. Até quando, ninguém sabe precisar assim de imediato!... Mas, para os que o receberam, o mais importante é que ele, o visitante, se sinta bem acomodado, como se estivesse em sua própria casa.
À noite, dá um giro rápido na cidade, ladeado por um casal de colegas que ali coabitam. Param, para relaxar, num barzinho – tipo palhoça – situado no entroncamento das rodovias que levam ao Estado do Ceará ou à única faixa litorânea do próprio Estado: Parnaíba. Ambiente aconchegante e animado pelo vozear de uma clientela jovem. Conversam amenidades.
Atento ao que parece novo ao seu redor, estranha a quietude absoluta de alguns senhores, de meia-idade, que ocupam as quatro mesas do seu lado esquerdo, justapostas e ainda descobertas.
Todos parecem alheios a tudo: mudos, sisudos, em verdadeiro sentimento lúgubre. Contraste com a descontração do outro lado do ambiente, onde os sorrisos se encardem de fumaça.
– “Não estão aqui pra rezar, pregar ou velar o embriagamento dos que se divertem!...” – presume.
Incômoda circunspeção. Um ouvido no prazer dos que se divertem, à sua direita, e outro no silêncio insosso dos vizinhos do lado oposto. – “Arre!”
Tamborila na mesa as canções típicas da região, pra se harmonizar com o rito e o ritmo dos seus novos amigos. Só o conflito de humores entre os dois pontos cardiais opostos daquele barzinho o faz, vez ou outra, sair do compasso.
Aí, o relógio marca meia-noite em ponto! – Graças! – A nova folha do calendário energiza o ambiente. Corre-corres: para forrar as mesas, desempacotar o bolo, acender as velinhas... – “Parabéns pra você... ... ...muitos anos de vida.” – Um senhor, alto e magro, inclina-se para apagá-las. O tempo o faz sexagenário a partir desse sublime momento zero.
Embora já tenha pedido para encerrar a conta, devido ao adiantado da hora, Fred, agora mais tranquilo, acompanha as palmas e o canto de cumprimento, como se conhecesse o aniversariante.
Sente-se um igual na espontaneidade coloquial da prazenteira madrugada.
Garçons à escuta, atendendo às ordens exclusivas do aniversariante. Por isso – julga –, a conta ainda dorme no caixa. Melhor voltar-se para o bate-papo excitante em sua mesa!...
Alguns minutos mais, ouve-se um “psiu!” alto e prolongado. Todo o barzinho emudece. Começa uma sessão e sucessão de discursos. A conversa alegre vira sussurro, em respeito aos oradores.
Cada um que complete a sua fala já indica o próximo a discursar. Hábito próprio da região: todos os convidados falarão alguma coisa.
E haja fala! E haja bajulação! E haja emoção! E haja palmas em profusão!...
De repente:
– “Agora, com a palavra, o visitante” – gritou o último orador.
Fred, nem aí ! . . . – “O visitante deve ser outra pessoa!” – supõe. Nada sabe a respeito do aniversariante. Como fazer um discurso assim improvisado?...
Quis continuar a conversa, quando ouviu novo chamado e o cutucar sussurrante do colega: – “Querem que você fale. Levante-se e diga alguma coisa. O homenageado é um cartorário de prestígio... e gosta de ouvir elogios... Vai!”
Mente meio ébria, organiza um improviso de dois ou três minutos. Agradece a honra do convite e – já para poupar os demais – diz estar falando em nome do seu grupo de amigos. E prossegue:
– “...um senhor cujo nome ainda não sei, cuja idade também não sei, mas que, pela aparência, pelos gestos, pelo tipo físico, posso compará-lo ao meu genitor... A tez morena; a voz audível e austera; a mesma capacidade de atrair amigos; a mesma compleição, saudável e robusta. Dinâmico, amoroso, inteligente e COMPENETRADO. Parabéns, caro aniversariante. Muita paz junto aos seus. Sucesso nos seus empreendimentos. Muitos anos de vida!”
Concluído o improviso, estende a mão para cumprimentar o homenageado, que lhe dá as costas.
Nenhum dos convivas do aniversariante aplaude o inditoso discurso, que – segundo um deles – “agradou no início e se borrou no final!”.
Ao contrário do que Fred esperava, todo aquele grupo volta a ter as mesmas caras amarradas de antes da meia-noite. Desconhece a razão. Fica mais assustado quando seus colegas, percebendo o conflito, o arrastam até o “fusquinha” estacionado ao lado e o empurram rispidamente para o banco traseiro. – “Nem no camburão da polícia é assim!” - pensa. Semiconsciente, jura inocência. Está certo de não ter cometido asneiras...
– “Amigo – diz, dirigindo o veículo, a colega mais conhecedora dos costumes da região – muito cuidado no que você diz por aqui, se quiser ter saúde! Você acaba de desmoralizar uma pessoa, de muito prestígio na cidade, com um termo pejorativo, o maior dos palavrões!...”
– “Mas eu não pronuncio palavrões!... Jamais usei-os, mesmo em brincadeiras!... Isso faz parte do vocabulário dos marginais...” – rechaça.
– “Pois aprenda, de uma vez por todas, que a palavra COMPENETRADO, aqui, somente aqui, significa: salafrário, cachorro, cafajeste, elemento indecente e tudo o mais que possa macular o brio da outra pessoa!” – alerta a colega, que acrescenta:
- “há mais de um mês ele vem preparando essa festa de aniversário... E, logo no comecinho, zero hora do dia D, chega você e estraga tudo!... Pelo que sei, do carinho que o povo tem para com aquele senhor, isso é imperdoável!”...
Fred se contém, amargurado, agastado...
Adentram na casa, quietos, pé ante pé. Não podem importunar aos que já dormem.
Pela manhã, inesperadamente, chega o colega paraibano, que disseram estar em gozo de férias. Larga a mala no corredor, porque ouve um ronco vindo do seu quarto. Porta entreaberta, vê que um estranho ocupa o seu território. Aí, qual um despertador, com muita graça, dispara, acordando a todos:
– “OXENTE!... QUEM É ESSE COMPENETRADO QUE ESTÁ NA MINHA CAMA, UAI?!...”
Fred se levanta, meio tonto, e tenta se explicar, esfregando os olhos e abrindo a boca num bocejo ainda sonolento.
Recebe, meio encabulado, os votos de boas-vindas do jovem colega de codinome “paraíba” e, porque já é hora, começa a se preparar para o início de sua missão. Somente a partir desse intranquilo, mas bem humorado, despertar, sente-se, na verdade, como se estivesse em sua casa.
Sem apetite, recusa a refeição frugal que lhe é oferecida. Sai, a pé, em direção à agência de sua empresa, um tanto pensativo:
- “Como contornar a chirinola em que me meti logo na primeira noitada nesta cidade?... Ir ao cartório e procurar o aniversariante pra apresentar minhas desculpas, talvez não dê certo!... Às vezes - como dizem -, a emenda e pior do que o soneto!”...
Adentra na agência, já conhecendo metade do seu quadro funcional. É apresentado aos dois administradores, que o chamam, animadamente, até a gerência. Lá, sobre a mesa, em papel laminado, uma grande fatia de bolo.
- Você não vai comer todo esse bolo sozinho, vai? - pergunta o gerente, já pedindo que lhe servissem um cafezinho.
- É comigo que o senhor está falando? - replica Fred, sem nada entender.
E o gerente esclarece:
- Claro, rapaz! Um senhor, cartorário aqui em Piracuruca – não sei o nome, mas acredito ser nosso cliente -, esteve aqui logo cedo e trouxe esta fatia de bolo. Deixou-a com nossa secretária sob rigorosa recomendação. Disse que é pra o visitante que está fazendo um trabalho aqui na agência. E o visitante é você, não?!... E nos convidou para um almoço, hoje, em Sete Cidades. Fica a 18 km daqui. É um sítio histórico muito importante que guarda registros de nossos antepassados. Muito visitado por antropólogos, geólogos, historiadores e pesquisadores do mundo inteiro. Vamos lá! Você vai conhecer toda uma beleza esculpida pela natureza, a maior parte em forma de animais petrificados. O convidador ainda disse que se parece muito com o seu pai... Quem sabe, ele até já lhe conhece! Vamos lá, sim, mas – quem me avisa, meu amigo é! - vou logo lhe prevenindo:
Segundo a secretária me transmitiu, hoje ele está completando sessenta anos.
PREPARE LOGO O SEU DISCURSO DE ANIVERSÁRIO!
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Nota do autor:
Este conto foi inscrito no 13º Concurso Talentos da Maturidade 2011 - promovido pelo Santander - e hoje, 03/12/2011, está sendo publicado neste RL sob novo título e com ligeiras alterações.
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