SERTÃO MEU - GERAES (cap. 02 )
Pelo quarto domingo do mês, o padre Kohnert vinha ao Engenho Velho: celebrava missa, batizados, casórios, e atendia um disparate de mulheres confessadeiras. Embora dotado de paciência bovina, era comum aquele povinho redomão derrubar o velho cura das tamancas, sobretudo quando a meninada miúda abria o bué, abafando-lhe os “– Dominus vobiscum!” Quase apoplético, o apóstolo do sertão improvisava uma prática estarrecedora – iniciada por sinistra imprecação latina vinda à mente, e que os fiéis desentendiam, daí prosseguindo galego, na berganha dos bês pelos pês, à moda dos loraços –, ameaçando boa parte da sua grei com as labaredas eternas do inferno; outros tantos, a custo e rogo, logravam esbarrar temporariamente no purgatório; só um terninho minguado de eleitos adentrava ao paraíso, passando antes por um milagroso buraco de agulha, sob as barbas venerandas de são Pedro!
No domingo de missa, o arraial em peso se abalava para a igreja. De comum, os cachorros chegavam pro culto bem primeiro que seus donos. Cheiravam-se em breves cumprimentos, no adro; peregrinavam pela acanhada sacristia; subiam ao minúsculo coro; armavam grulhas embaixo do altar-mor... O sacristão teve até que encurtar a corda do sino, por mode os au-aus mais esgalopados virem mordentar ela, tangendo o bronze sacrilegamente. “- Cachorro tocando sino, Virgem Santíssima!” Esconjuravam as beatas. Com a entrada do povo, eles tomavam modos alojando-se nos cantos – cabeças estiradas sobre as patas dianteiras, olhos mortiços, não que se instruíssem na crença, mas porque é do feitio deles vigiar diuturnamente. Só arengavam se algum patagão descuidoso lhes pisasse no rabo; ou, senão, quando ao mesmo tempo apetecia a mais de um deles o pedaço de biscoito com que a mãe acalentara, indagorinha, sua criança birrenta e cessado o choro rolava sem dono pelo assoalho do templo.
Não era difícil, também, um cachaço mandrião ou algum bode vadio – daqueles tantos animais criados à solta, no Largo – romper sem-cerimônia, igreja adentro; e nenhum dos fiéis era capaz de mover sequer pestana para enxotar o intrometido, habituados que estavam com aquele entra-e-sai de bichos, nas próprias casas. Só o padre Kohnert, mais por dever de autoridade, sem interromper a celebração e de costas para a assembléia, esbravejava entre irônico e jocoso: “- A igueza hoze non ficarr devendo nadinha, parra a Arca de Noé, iá?!" Porém, a revelia de seus protestos protocolares, o povo com duas e quatro pernas continuou assistindo às missas. Domingo era dia de ver Deus, e as criaturas todas iam, ara!
Na hora de viajar, contudo, o reverendo batia o pé no toco. Que ninguém metesse a colher de pau. Se algum paroquiano caçoava do Chuvisco, seu burrico, por já estar decrépito, podendo esticar os loros numas daquelas travessias costumeiras pelo cerradão, o padre dava de ombros, desdenheiro, teimoso, quiçá com uma pontinha de razão. Conhecia de trás pra diante as manhas e artimanhas da sua montaria predileta. Estava amarelo de saber a hora de tocar mais ligeiro, não poupando de fato algumas cutucadinhas com as rosetas das esporas, pela barriga do mu. Tampouco se enganava quando era hora de deixar ele seguir passarinheiro, quase de passo, treteirozinho, embaralhando as orelhonas – imerso em pensamentos insondáveis –, ou esbarrando aqui e acolá para mordentar uma touceira de capim mais viçoso, na beira da estrada.
Também o burro recitava de cor e salteadas, as manias do pároco. Intuía, perfeitamente, quando o velho cura tirava lá, seus cochilos, ao dobrarem espigões ermos. Sentindo a carga pensa para a cabeça do arreio, adivinhava logo: era a madorna do sô vigário. Por natureza cuidava o Chuvisco de não falsear as patas nos buracos, que em noites de lua cheia os tatus cavavam nos caminhos mais esconsos. E na mais completa solidão das Geraes – asno e homem –, meditabundos, devagar e sempre, venciam largas léguas. Caso deparasse com uma porteira a lhe truncar a marcha, emitia o burrico um zurrado breve, talqualzinho apito de Maria-fumaça em manobra na estação, despertando de mansinho o apóstolo. Afocinhado na sela, contrariado, o reverendo recitava uma jaculatória pouco cristã. Mas o burro não zombava!
Quer sol, quer chuva, era tiro e queda: pelo quarto domingo do mês lá em-vinha o padre Kohnert, engarranchado quase na anca do Chuvisco, para os ofícios religiosos. Um chapelão de aba larga, escurecido pelo tempo e uso, resguardava-lhe a cara bolachuda. Toc-toc-toc! Era o cavaleiro da singular figura rompendo chão e sempre disposto a responder, galego e com meneios o “– Parra sempre, seza!", aos “– Louvado-seja-nosso-Senhor-Jesus-Cristo!” que lhe dirigiam os estradeiros, empinando os chapéus, respeitosamente.
E esteve, pois, tudo assim, regular em seus conformes, até que certo Salviano Fonseca comprou e veio de morada para a fazenda do Brejim – a um pulo e um grito do Engenho Velho. Homem de modos arredios, nem procurou camaradagem com o pessoal do lugar. Tampouco cuidou em pagar a visita boas-vindas, que lhe fizera Zuza Quirino, confrontante seu. A bem dizer, com mais de mês de morada nova, o fazendeiro botara os pés no comércio por duas vezes: da primeira, esteve esbaforido na farmácia do Pacheco, aviando remédio para atalhar colerinha braba, num filho seu; a segunda se daria poucos dias depois, quando touxe o corpo defuntinho do menino, para o cemitério do povoado.