SE FERROU, OTÁRIO!
Rafael Velloso



"Não vos enganeis. De Deus não se zomba, pois tudo o que o homem semear, isto também ceifará".
(Gálatas 6:7)

 

     Todo bairro tem seu padre, seu maluco, seu morador adorado por todos e sua fofoqueira. Todo bairro tem histórias, tragédias, grandes amores e até mesmo crimes. E com certeza, todo bairro tem uma história que tenta se tornar um mito. E foi assim que surgiu o mito de Zé Da Palha.
     Num bairro afastado do centro do Rio de Janeiro, morava José Palhares Bianchi, O Zé Da Palha, devido ao seu chapéu de palha inseparável em todas as ocasiões. Desde de moço Zé arrumava confusão pela vizinhança do bairro. Pregando peças nos mais velhos, nas outras crianças e até mesmo nos próprios pais.
     Os vizinhos evitavam o menino. Era tão travesso que em dia de São Cosme e Damião, nunca distribuíam doces ao pequeno diabinho. Evitavam contato visual, físico e até mental com tal criatura. Viam na criança, requintes de crueldade. Aprontava até mesmo com animais indefesos, como no dia que colocou uma bombinha dentro do fiofó de um gato, e deixou-a explodir por ali mesmo. Nunca se soube o fim do bichano, mas sabia-se que Zé da Palha quase morreu de rir. O diabinho chegou a ficar roxo!
      Crescera aprontando ainda mais. Deixou a barba crescer, parou de tomar banho e pegou certa implicância com os crentes do bairro. Quando um pastor chegou da zona sul e inaugurou uma nova igreja bem na pracinha aonde Zé da Palha dormia, o agora jovem diabo viu ali sua chance de aprontar das suas. Às sete da noite, quando havia culto, ele se colocava diante da porta da igreja e debochava do pastor. Implicava com seus trejeitos afeminados e com os berros que dava durante a pregação.
      A implicância também acontecia durante o dia, a tarde, enfim, em qualquer hora que o pastor Romeu passasse pelo bairro e cruzasse seu caminho. Era algo tão inconveniente, que até os fãs das brincadeiras de Zé se sentiam constrangidos pelo homem de fé. E Romeu, ou melhor, o Pastor Romeu nada respondia. Continuava andando com seu nariz empinado e postura correta, sua bíblia dourada nas mãos e sempre com sua bolsa de couro jogada para o lado direito de seu corpo. Poucas eram as vezes que trocava olhares com seu implicante particular.
     O bairro não era muito grande, e logo todos souberam da rincha entre os dois. Logo diversos moradores sentavam-se na praça, horinhas antes do culto, só para ver quem era Zé da Palha e o tal pastor afeminado. A praça nunca estivera mais cheia. Crianças, idosos, gestantes e até padres de outras paróquias queriam conhecer o tal perturbador da paz do pastor. O mais interessante, era que durante ou depois dos cultos, Romeu não tocava no assunto. Simplesmente parecia ignorar a presença do perturbado.
     Mas a sorte de Zé da Palha estava para mudar. Cansado de não ser notado, se isolou no meio da mata e ficou pensando em como fazer o pastor respondê-lo. Pensou durante horas, dormiu. Acordou e voltou a pensar. Até que finalmente parecia ter tido um plano. Porém, só funcionaria perto do natal, quando haveria o Pano de Fogo.
     Faltando um mês para o natal, Zé da Palha parecia ter sossegado. Os homens que bebiam nos bares da praça, os padres, as crianças, todos se perguntavam o que teria acontecido para que o show do louco tivesse parado. Sentiam falta das risadas em cima do pastor empinadinho, que foi o apelido dado a Romeu. Logo mais pessoas começaram a caçoar dele. Escondidos ou descaradamente, muitos gritavam “Vai Empinadinho” quando o viam passar. E Romeu, sempre tranquilo. Sem responder às ofensas.
     Os dias se passaram e chegara o dia do Pano de Fogo, que se tratava de uma cerimônia onde o pastor passava um manto sobre os fiéis, assim operando milagres sobre eles. Nem se precisa dizer que a igreja lotou. Dezenas de fiéis se empurravam entre os bancos, esperando a hora de o pastor entrar e curá-los.
     Um moço de cadeiras de rodas entrou com dificuldades pelo corredor e se colocou bem próximo ao altar. E foi assim que se ajeitou, que Pastor Romeu surgiu com roupas claras e uma capa vermelha nas costas, que seria o tal pano. No começo, falou sobre fé, falta de fé e pecados. Depois rezou algumas palavras, abençoou algumas crianças e por fim, tirou a capa das costas. De olhos fechados correu por entre os bancos. Todos queriam ser tocados pelo tal pano. De repente, quando o pastor estava no fundo da igreja, ouviu-se um grito.
     -ESTOU CURADO!- disse.
     Todos procuravam quem teria sido o irmão que fora tão rapidamente atendido. Romeu tirou o microfone do bolso e começou a orar novamente aos gritos. Queria saber quem fora o abençoado. Queria que ele se apresentasse. Ao chegar perto do altar, viu que o homem na cadeira de rodas parecia se balançar.
    -Fora você, irmão inválido? A graça de nosso Senhor Jesus caiu sobre sua enfermidade?
    -Sim, pastor. Eu posso andar e...- começou o rapaz parecendo emocionado.
    -Diga, Irmão! Diga como sua vida irá mudar! Mostre o poder de nosso Jesus! Aleluia, fiéis!- gritou sendo copiado por todos os presentes.
    Imediatamente o inválido se levantou da cadeira gargalhando
    -Notem a felicidade desse homem! Notem como ele se sente tendo sua vida de volta! Reparem como Deus é... - o pastor interrompeu a sua fala ao notar quem era o homem.
    Zé da Palha.
    A grande maioria sorriu. Alguns tossiam de tanto que gargalhavam da mais nova brincadeira do rapaz mais inconveniente de todo o bairro. Outros, sérios, o olhavam com grandes olhos de desprezo e pediam que Deus perdoasse-o pela brincadeira infeliz.
    Romeu voltou ao palco, estendeu as mãos sobre os fiéis e iniciou uma oração que falava da falta de fé. Zé riu mais um pouco e saiu da igreja sob os olhares de admiração e indignação misturada com reprovação. Mas estava satisfeito, pois tinha pregado uma peça no pastor delicado e voltado ao centro das atenções do bairro.
    A história se arrastou por semanas. Era assunto de roda de amigos, de roda de dominós, das crianças na escola. E por fim, Pastor Romeu falou sobre o ocorrido durante um culto. Mas somente disse ter pena daqueles que brincam com as palavras e poderes de Deus.
    O que ele não sabia é que naquele instante, Zé da Palha, após beber todas no bar da esquina, acabava de ser atropelado em cima da calçada. Um carro em alta velocidade subira sobre o meio-fio e passara por cima das pernas de Zé, que caiu desequilibrado pelo álcool no chão. Nunca havia sentido tanta dor em sua vida.
    Zé tivera que ficar dias no hospital por conta de suas pernas, e tudo indicava que jamais voltaria a andar. A notícia se espalhou pelo bairro, e nunca mais ninguém implicou com Romeu. Todos o cumprimentavam e abaixavam a cabeça quando cruzavam seu caminho, pois acreditavam que tudo o que tinha acontecido ao inconsequente Zé da palha, teria sido obra da força das orações do pastor tão perturbado.
    Ali todos começaram a entender também que brincadeira tem limite, e que até os loucos podem ser castigados quando brincam com coisas tão sérias.
    E Zé da Palha nunca mais brincou com ninguém, querendo apenas aprender a manusear sua cadeira de rodas.


fim
Fael Velloso
Enviado por Fael Velloso em 23/11/2011
Código do texto: T3351145
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