"Toco Preto".
Sentado na varanda de minha casa, meus netinhos vieram conversar.
Crianças viçosas, irradiando força e poder.
Vovô, conta a história do Toco Preto, isto conta vai, conta vai começaram uma gritaria pulando no meu colo.
Minha filha veio da cozinha ficando brava com eles.
- Deixem o vovô em paz ele precisa descansar, está dodói.
Calma, calma, eu vou contar, então sentem-se e fiquem quietos. Todos sentaram.
Olhei para o pequeno cercado onde meu amigo comia ração em um coxo de madeira.
Parece que leu meus pensamentos relinchou um cumprimento e foi para a sombra de uma figueira descansar.
Peguei um cigarro de palha que vem em uma caixinha, não consigo mais fazer meu cigarro, nem picar fumo como antigamente.
Bem tempos atrás, ainda bem jovem, era tropeiro.
Comprava, vendia cavalos, burros, até algumas vacas.
Mas o principal eram os burros.
Tinham três tipos de burros, de arado, de carroça e de sela.
De arado e carroça eram burros velhos e mansos quase não davam trabalho.
Às vezes comprava burros novos que dizem ser xucros precisam ser, domados, amansados.
Em algum lugar do Paraná, comprei uma tropa de dez ou doze animais.
Quando cheguei em casa, precisava selecionar, separando os melhores e os piores.
Tomei um banho e quando ia comer alguma coisa, pois ainda era cedo para almoçar, ouvi a gritaria.
Os peões que separavam os animais encontraram um burro bravo. Fui verificar porque estavam lhe batendo não gosto que maltratem os animais.
Logo que cheguei ao animal pararam de bater, mas um rapazinho que seria meu braço direito passou a novidade.
Seu Jerônimo acho que o senhor comprou o filho do cão.
Aquele toco preto ali tem parte com o diabo.
Gostava de ouvir quando o pessoal fantasiava sobre alma penada, diabo estas coisas.
Eram muito supersticiosos.
-Deixem-no sossegado, soltem ele no cercado e cuidem dos outros. Sendo ainda jovem o burro que todos chamavam de toco preto realmente assumiu o nome.
Cresceu, engordou ficando um enorme burro, todinho preto.
Todo não, pois tinha uma estrela branca na testa.
Para domá-lo comecei tratá-lo.
Raspava seu pelo, tratava dando-lhe milho na boca.
Após alguns dias já conseguia com uso de uma corda conduzi-lo pelo pequeno espaço que ficava.
Com ele em pleno vigor, falei para os rapazes.
-Chegou à hora.
Quando viu a sela mineira nem a minha presença conseguiu acalmá-lo.
Amarrei uma perna dele, ficou só com três, amarrei sua cabeça junto ao corpo, aí colocamos a sela.
Ele pulou por mais de quarenta minutos arrebentando a sela, corda enfim tudo que estava nas suas costas.
Amarrei-o em um tronco colocando outra vez o arreio e desta vez eu o montei.
Tive a impressão que não iria pular, mas assim que abri a porteira para dar uma volta o show começou.
Pulou outra vez de todo jeito, porém eu estava esperando por isto.
Galopamos a favor do vento.
Quando não agüentava mais, pois estava gordo, voltamos para casa.
A partir daí todos os dias fazíamos o adestramento.
Rapidamente passou a ser minha montaria predileta.
Apenas, suportava ninguém mais podia montá-lo.
Comprei para ele uma sela de prata com inúmeras argolas fechando seu peito parecia cavalo de rei.
Quando chegava a qualquer lugar era recebido como artista. Naquela época tudo aqui era mata, ouvia-se falar sobre onça, ataque a porcos e bezerros nos sítios vizinhos.
Sempre andei armado porque carregava dinheiro e por aí não se sabe o que se pode encontrar.
Nesta noite minha esposa que ainda era mocinha me acordou de madrugada.
Tem bicho atacando os bezerros, as vacas estão assustadas, mas vá armado pode ser onça.
Coloquei uma guaiaca (cinto com coldre e bolsa) na cintura a saí de casa.
Ao chegar ao piquete, onde prendia os bezerros de vacas de leite, vi muito sangue no chão.
Um bezerro já grande ou novilho estava quase cortado ao meio. Tentei puxar a arma, não consegui.
A onça me agarrou cravando as unhas no meu peito e costas enquanto abocanhava meu ombro.
Neste ínterim, com certeza em segundos seria trucidado, um barulho infernal de tabuas voando por todos os lados.
Toco Preto, realmente havia se transformado no filho do cão e zurrando atacou a onça com coices e mordidas.
A bicha me largou e recuperando do susto saltou sobre ele enfiando suas garras profundamente em seu pescoço.
Num esforço sobre humano, a dor era fortíssima consegui sacar a arma.
Praticamente a queima roupa, disparei todos os tiros e caí por terra.
Acordei uma semana após, enfaixado, com dores, pois fui muito bem cuidado por sua avó.
Dos três apenas a onça morreu, pois os peões trataram meu amigo colocando-o em forma.
Depois disso fiquei sem poder montar e aposentei Toco Preto que vive comigo até hoje.
De todos os amigos que tive, ninguém foi mais fiel que ele.
Nossas cicatrizes são iguais, meu serviço agora é lavá-lo, escová-lo, tratá-lo.
Se eu for primeiro tenho a promessa de todos que ele não trabalhará até morrer.
Meu netinho menor pede vovô mostra as cicatrizes, mostro e depois de um puchah!,
Você é um herói né?
O Toco Preto também né?
-Sim ele também.
Chego à cerca, ele vem como não quisesse nada.
Pego a raspadeira lhe dou uma boa escovada, ele alegremente corre pelo seu pequeno espaço.
A marca da garra da onça viraram pequenas listas brancas, estão desaparecendo.
Toco Preto está ficando cinza, acendo um cigarrinho e falo:
-É estamos ficando velhos né amigão?
Ele parece que entender e zurra feliz.
Esta história é real só não foi vivida por mim.
É de um amigo de um amigo meu.
E parece ser verdade.
É de um amigo de um amigo meu.
E parece ser verdade.
Oripê.Machado.