110 – PERDIDOS NA NOITE...
Certa vez fomos pescar no rio Paracatu(MG), desviamos o nosso percurso passando pela cidade de João Pinheiro(MG), e nas proximidades desta cidade existe um posto da Polícia Rodoviária onde examinaram a nossa documentação e nos alertaram que um dos pneus de uma das caminhonetes estava demasiadamente baixo, e para nossa surpresa o pneu de estepe também estava murcho, sob um arvoredo retiramos os pneus avariados e na entrada da cidade em um posto de gasolina foram consertados.
A noite já avançava e nós avançamos pela noite adentro por estradas de chão na confiança cega no conhecimento de um dos nossos companheiros que arrotava vantagens que mesmo de olhos fechados ele nos guiaria até às barrancas do rio, céu encoberto, na escuridão todas as estradas se parecem, das vezes todas as estradas desaparecem, depois de muitas idas e vindas sem um rumo norteador concluímos que estávamos perdidos no sertão dos Gerais, que melhor seria esperar o dia amanhecer, e do primeiro passante obteríamos informações para a viagem prosseguir.
Em uma encruzilhada acampamos, e cada um foi se ajeitando como pode, uns em colchões esparramados pelo chão, outros nos bancos das caminhonetes, outros em redes, fogão cozinhando a todo fogo, afinal ninguém é de ferro, a fome fazia estrondos em nossas barrigas.
Meu Pai que sempre gosta de acender fogueiras, pelas beiradas da estrada com alguns amigos foram ajuntando galhos secos, pedaços de postes, tão ressequidos estavam que o fogaréu logo no envolto a tudo iluminou. A terra um tanto arenosa, solta, cerceando a fogueira, nela nós nos arrumamos e o jantar foi servido.
A noite desconvidava para qualquer passeio, desenluarada e desestrelada, céu encoberto, nuvens e mais nuvens, mau presságio, e quem não tem o que fazer conta causos e acontecidos, quando do meio daquela escuridão ouvimos ruídos, chiados de algo sendo arrastado, mais e mais se aproximando, alguns revolveres engatilhados preventivamente na espera de algum perigo.
Uma sombra assombrando foi se mostrando já no alcance do clarão da fogueira, para surpresa de todos uma pequena carroça de dois varais puxado por um andarilho que pasmado e desentendido ficou, foi se aproximando no pé por pé, cautelosamente e a uma certa distância de nós se estacou, um cachorro magro ao seu lado em guarda sinalizava paz abanando o rabo, meu Pai no ligeiro foi recepcionar aquela alma de aparência tão sofrida, roupas em frangalhos, descalço, todo sujo e empoeirado, cabelos e barba de há muito tempo por cortar, calado, agora menos assustado e mais maravilhado estava com a nossa presença naqueles cafundós dos Gerais.
Meu Pai, sempre ele, foi logo convidando o andarilho para um merecido descanso na nossa companhia, no agrado um bom prato de comida foi logo servido, cerveja geladinha, o homem já sentado na areia só observava, comia e bebia, comia apressadamente como pressentisse que alguém fosse lhe tomar o prato, na sua mão servia da comida ao seu cão, eu sempre gostei é de observar os detalhes, da penumbra mirei aquela criatura, o seu jeito de sorrir, de agradecer, a maneira como enfiava os dedos sujos na boca para deslocar algum pedaço de carne na certa espremido entre os seus dentes, das vezes tapava uma narina e com a outra forçava esguichos de um catarro grudento, dificultoso de sair, aquilo enojou alguns companheiros. Vez outra esticava seu negro olhar para o meu lado, abaixava céleremente a cabeça quando sentia que também o estava observando, indaguei:
- Você é de que região?
Um tanto gaguejando, despistando:
- Não sou de lugar nenhum, meu senhor!
- Para onde você segue?
- Sigo pra lugar nenhum, meu Senhor!
Vi que escondia seus detalhes, tinha segredos e pormenores, talvez pela sua sina.
Virando incisivamente para o meu lado, arriscou:
- E o Senhor pra onde vai?
- Estamos procurando pela fazenda Jandaia de propriedade do senhor Manoel Firmino Pimentel, onde vamos pescar!
Humildemente ele abaixou a cabeça e se pos a sorrir, gesticulava, conversava baixinho consigo mesmo, e não consegui entender o que dizia. Arrisquei:
- O que você faz nestas bandas, nesta escuridão?
– Eu estou perdido, e o Senhor?
– Eu também estou perdido!
Dando-me as costas, não no desafio, nem no pouco causo, com um graveto se pos a ajeitar a fogueira, seu cachorro deitado ao seu lado, de onde eu estava a sua imagem refletindo todo aquele clarão mais parecia um profeta dos tempos bíblicos, calmamente ele remexia as brasas, apesar de ser bem mais velho que eu insistia em me chamar de senhor, sem olhar para o meu lado perguntou:
- Senhor? De nós dois quem é o que está mais perdido?
Aquela pergunta tão surpreendente fez nascer em mim uma admiração, aquele caminhante mostrava perspicácia, uma sabedoria matuta de ler os sinais, agigantava em adivinhações, resguardei e nada respondi! E ele continuou falando, talvez conversasse com a fogueira.
- Todos nós temos segredos, alguns carregam mais segredos, outros têm certos segredos que segredam até de si mesmo. Eu fujo do meu passado, o Senhor também foge do seu, mas eu posso voltar para a minha família pedir perdão pelas minhas gravíssimas falhas e com grandes chances de ser perdoado, Paulista para muitas pessoas o dinheiro é uma desgraça, amontoei fortunas, me senti poderoso e pus tudo a perder, arruinado, pensei em suicidar, imaginei muitas maneiras de me matar, acovardei e sai pelo mundo e até o pouco dinheiro que me restara perdi nestas andanças, hoje sou um caminhante de beira das estradas, um mendigo, mas eu ainda posso voltar para minha família...
Tagarelamos mais alguns assuntos, e ele se foi agigantando diante dos meus olhos, inteligente, com desprezo quase absoluto às coisas materiais e parecendo que até a si mesmo desprezava.
- Paulista! Nestas minhas andanças encontrá-los nesta escuridão dos Gerais foi um assombroso acontecimento, mas muito gratificante foi que vocês preencheram um enorme vazio que carrego aqui dentro do peito... Se vocês seguirem esta estrada que vai na direção do por do sol, lá na frente encontrarão um imenso pé de jatobá, nele está parafusado um disco de arado, e neste disco está escrito, Fazenda Jandaia, está escrito também o nome do proprietário, destino de vocês e que façam uma ótima pescaria e que Deus os protejam, obrigado pela comida, e pelo carinho com que me receberam.
A Lua das nuvens se livrando toda se mostrou, o Cruzeiro do sul também se exibiu e ele já levantado sacudiu o pó de suas roupas, chamou pelo seu cachorro, foi se afastando e de nada valeu a nossa insistência para que pernoitasse e partisse junto com o amanhecer, partiu arrastando a sua carroça e a sua solidão, de ninguém no abraçar quis para se despedir, a penumbra foi escondendo as suas feições, e lá de longe ele acenou e gritou:
- Adeus!!!
A Lua mais e mais se emborcou para derramar toda a sua luz, a estrada se fez nítida, sob os arvoredos monumentos de sombras entremeados de clarões se mostravam, bem lá na frente onde as sombras e os arvoredos já se misturavam com as estrelas, o Caminhante pela última vez acenou e em nada ele se fez na distância do olhar, mas não no imaginar onde em meus momentos de desfazer sempre o encontro, inesquecível...
Ele não quiz dizer o seu nome, muito menos se interessou em saber dos nossos nomes, deixou como lembrança uma alegria e uma tristeza, alegria por tê-lo conhecido, tristeza por vê-lo partir naquelas condições, que o Senhor Deus o ilumine e o proteja!
Sozinho, por um bom tempo fiquei olhando para aquelas sombras e clarões, imagens fantasmagóricas caprichosamente pela estrada bordadas e que agora atentamente me ouviam:
- No mundo daquele Caminhante o sol brilha, a lua brilha, as estrelas brilham, no meu mundo, aqui neste meu mar de dentro o sol não brilha, a lua não brilha, as estrelas não brilham... Em suma... Nesta noite, sou eu o que está mais perdido!!!