LEITE EM PÓ
Passávamos por muitas dificuldades. Consertar relógios – ofício do meu pai – e costureira – ofício de minha mão - naquela vila perdida no meio do mundo, não nos permitia termos o mínimo necessário. Andávamos por volta do ano de 1961. Naquela época o Brasil recebia uma cota de leite vinda dos americanos. Lembro-me que um determinado senhor por nome de “Nonô” foi encarregado de receber aqueles sacos de leite para distribuir com a população pobre. Lembro-me como se fosse hoje, daquela imagem impressa nos sacos: uma mão azul e outra vermelha simbolizando um aperto de mãos. Leite para a paz. Nunca sabíamos o dia em que aquele tão desejado leite seria distribuído. Por diversas vezes fui até a casa daquele homem estranho tentar um pouco daquele leite. Quando tomávamos conheci-mento a fila já era enorme. Mesmo assim minha mão me dava um pequeno caldei-rão esmaltado e lá ia eu para o fim da fila. Nunca consegui chegar lá. O leite sempre acabava antes. Lembro-me ainda daqueles privilegiados que conseguiam, e sem nenhum pudor, metiam as mãos em suas vasilhas e começavam a come-lo ali mesmo. Eu salivava, babava. Era capaz de sentir o gosto, (mas que gosto? – se eu nunca tinha experimentado). – Acabou – alguém gritou lá na frente. A fila se desfazia. E mais uma vez lá ia eu de volta para casa de cabeça baixa com o meu caldeirãozinho vazio. Até que um dia, já escurecendo, minha mão me deu de novo o caldeirãozinho e me mandou à casa do seu Nonô. Não havia ninguém em frente à casa. Já estava escuro quando abri a pequena portinhola de madeira que dava acesso a um pequeno corredor de meia parede ao lado da casa até encontrar a porta, quase no fundo da casa. Bati na porta. – Quem é? – alguém perguntou. Fiquei petrificado. Aquele homem estranho, de estatura mediana, gordo, de pele branca e uma aparência doentia, curvo, meio manco, de pouca ou quase nenhuma conversa, que morava sozinho, despertava medo. E antes mesmo que eu pudesse responder qualquer coisa, ele já aparecia com um fifó na mão e perguntava de quem eu era filho. - Sou filho de Zau – respondi. Ele não disse nada. Num explicito gesto de má vontade e de uma especial concessão, pegou o meu caldeirãozinho, abriu o miraculoso saco que estava no meio da sala em cima de um pequeno estrado de madeira, enfiou naquele saco e o encheu com aquela preciosidade. Não me lembro de como cheguei em casa. Mas o sabor daquele leite ainda permanece gravado até hoje nas minhas papilas gustativas.