ACAIACA.

     Em meus tempos de estudante secundarista, por diversão e mania, juntamente com os colegas da classe, costumava abandonar a atenção das aulas, para o desassossego dos professores, e passava a elaborar frases ou palavras palíndromos, que são aquelas que podem ser lidas de trás para frente, tais quais: “asa, hannah, bob, renner, matam, mussum, arara, osso, ovo, raiar, saias”, entre outras tantas ou mesmo frases como: “rir, o breve verbo rir”, “a base do teto desaba”, “anotaram a data da maratona”, “Amor a Roma”, etc., e tal, e assim "matávamos" a aula, entretidos no passatempo. Hoje com a facilidade da Internet, bastando somente alguns cliques, encontram-se frases e palavras aos montes, bem diferente daquelas saudosas ocasiões, sem as facilidades modernas de hoje.
     
     Essa lembrança me veio à mente hoje quando passei em frente ao Edifício Acaiaca, (na época de escola era o palíndromo mais conhecido), ao ler seu nome, instantaneamente me remeti à frente dos colegas do passado e percebi que esta doce pronúncia vem sendo por mim escutada e falada desde os tempos de criança. Acaiaca entre outras “coisas” é o nome da terra natal de meu pai e lugar onde estive em algumas ocasiões, atualmente a cidade conta com cerca de 4 mil habitantes, situa-se na Zona da Mata mineira, vizinha de Mariana e Ouro Preto. A cidade foi formada à beira do Rio do Carmo ao redor da Capela erguida em homenagem a São Gonçalo, por bandeirantes e garimpeiros vindos da vizinhança em busca do ouro e diamantes por volta do ano de 1727.
     
     Meu pai nos contava causos de sua infância na Estação Ferroviária da cidade, sobre o Coreto da Praça da Igreja Matriz, lugar onde a “Furiosa”, apresentava seus dobrados, após as missas matinais aos Domingos, e também sobre a lenda do Tejuco, a Diamantina dos dias de hoje, e que dera nome a sua cidade natal. Existia naquelas bandas, em uma aldeia indígena, um frondoso e grande cedro, que os índios em sua língua chamavam de acaiaca. No começo dos tempos os rios e seus afluentes, que atravessavam as terras da aldeia, transbordaram, inundando toda a região. Na enchente todos os índios morreram, exceto um casal que havia subido no cedro. Quando as águas baixaram, eles recomeçaram a vida e a povoar a região. Esta era a razão para os índios terem verdadeira adoração por essa árvore, acreditavam que se o cedro desaparecesse, eles também teriam a mesma sorte. Os primeiros colonizadores que lá chegaram eram conhecedores da crença, e para levarem o garimpo adiante, teriam que retirar os índios de suas terras, mas para tanto, esperavam uma oportunidade para derrubar a acaiaca. Na cerimônia de casamento da filha do cacique da tribo, enquanto os índios comemoravam, os garimpeiros derrubaram a golpes de machado a grande árvore. A tribo ao ver a árvore sagrada no chão, ficou dominada pelo terror e deram inicio a uma impetuosa lamúria, acreditando que seu fim estava próximo. Naquela noite houve uma grande discórdia entre o cacique e os guerreiros da tribo, que os levou a uma batalha madrugada adentro. Na manhã seguinte a aldeia estava repleta de mortos, não houve sobreviventes, ao mesmo tempo uma tempestade terrível caiu sobre a região, levando em seu turbilhão a acaiaca derrubada, o restante das árvores, rochas e as casas dos garimpeiros, que ficaram aterrorizados e abandonaram a região. Pouco tempo depois, outra leva de garimpeiros chegou à região e encontraram a terra arrasada, mas, em virtude da tempestade que lavara o terreno, permitiu-lhes encontrar as pequenas pedras brilhantes, (diamantes), em meio à terra nua.
     
     O nome Acaiaca que também foi dado ao edifício no centro de Belo Horizonte, faz alusão à lenda indígena, conforme pode ser visto nas duas carrancas que decoram sua fachada. O edifício teve sua construção iniciada em 1943, durante a 2ª Grande Guerra, em estilo art déco, com 130 metros de altura e 29 andares, conta com um abrigo antiaéreo, pelo medo que se tinha à época de um ataque da Luftwaff, (Força Aérea Alemã), talvez o único que exista na capital e hoje usado como doca de carga e descarga do edifício. Foi inaugurado em 1947, nas comemorações do cinqüentenário da capital, e deu inicio à verticalização de Belo Horizonte. O edifício já abrigou em seus andares escritórios dos melhores advogados da cidade, faculdades, órgãos públicos, a sua sobreloja já foi ocupada por uma das melhores casas noturnas de Belo Horizonte, várias lojas de luxo, sendo a mais famosa a Sibéria Modas, ícone da moda feminina nos anos 50, e local onde minha mãe trabalhou por muito tempo. O 23º e 24º andares eram famosíssimos, foi em um desses andares que na década de 60 meu pai me levou, para assistir ao programa infantil: “O Circo do Carequinha”, que era transmitido pela extinta TV Itacolomi, que ocupava os dois últimos andares.
     
     Rememorando esse passado recente, percebo que fui freqüentador assíduo do Ed. Acaiaca. Na década de 70 ele abrigava o T.U., (Teatro Universitário da UFMG), onde estive algumas vezes. Quando franqueado ao público podíamos assistir as encenações, muitas delas orientadas por atores e atrizes do porte de Fernanda Montenegro e Cassiano Gabus Mendes, entre outros. Em seu andar térreo, logo após os elevadores, havia a entrada para o Cine Acaiaca, de acústica ótima, lá assisti a vários filmes, em uma de suas 900 cadeiras, sendo o que mais me marcou: “As coisas da vida”, (Les Choses de la Vie), filme francês de Claude Sautet, com Michel Piccoli, Romy Schneider, Gérrard Lartigau e Lea Massari. Até pouco tempo atrás eu mantinha guardado o cartão, onde anotava os detalhes dos filmes que assistia, naquela época eu pensava que seria crítico de cinema, acabei me contentando em ser um simples cinéfilo, sendo que nem mais cartões, hoje em dia, são necessários para as anotações dos detalhes dos filmes, pois, a internet se encarrega disso. No lugar do Cine Acaiaca, atualmente, as vibrações continuam, não sei precisar se mais ou menos emocionantes, principalmente em relação aos filmes daquela época, mas, com certeza os espectadores vibram com o discurso religioso, feito por um pastor da Igreja Evangélica, que ocupa aquele espaço glorioso de outros tempos. Anteriormente, no começo da década de 60, no 11º andar, funcionava o Sindicato Patronal da Indústria de Fiação e Tecelagem. Jango, (João Goulart), Presidente em exercício e vice de Jânio Quadros, que havia renunciado ao mandato, sofria oposição ferrenha do empresariado mineiro, que se reunia no edifício para tramar um golpe contra a suposta tendência comunista, que diziam existir naquele governo, esse imbróglio acabou nos levando a um período obscuro em nossa história. No decorrer dos anos 80, as segundas, quartas e sextas-feiras, por um período ininterrupto de quatro anos, subi até o seu 18º andar, para as aulas no Roriz English Course, do meu saudoso professor Roriz, de quem adquiri conhecimentos muito além da língua inglesa. Foi ele quem me apresentou o outro lado do mundo, a Ásia, de maneira que jamais esqueceria. Filho de portugueses, nascido em Macau na China, cidade que foi colonizada e administrada por Portugal durante mais de 400 anos. Após a morte dos pais, o Prof. Roriz mudou-se para Xangai, posteriormente para Nagasaki no Japão, em seguida foi para Los Angeles nos EUA e de lá veio para o Brasil. Falava fluentemente 4 idiomas, português, mandarim, japonês e inglês. Foi com ele que aprendi a usar o "hashi", (pauzinhos usados como talher pelos asiáticos), e a gostar da culinária japonesa e chinesa.
     
     Por estarmos sempre centrados e preocupados com o nosso próprio cotidiano, deixamos de lado algumas simplicidades, como a história recente a nós cercar, e algumas vezes vivenciadas, sem que percebamos, por nós mesmos. Histórias essas que nos conecta com um passado não muito distante, quando não muito, com o passado de nossos entes queridos que já nos deixaram, portanto, ao olharmos para cima, assim como olhei para o Acaiaca, havemos de olhar com carinho, para que possamos vislumbrar a significância de nosso próprio passado.
    
JLeal
Enviado por JLeal em 29/10/2011
Reeditado em 26/07/2021
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