TRUCANDO COM O CORNUDO

“Foi nos idos de vinte e cinco e o minuano soprava com afinco, apeei do meu cavalo, tirei o embornal do meu baio, e levei o meu ‘Coronado’, potro de fibra e valente para, no estábulo descansar. Dei uns cobres ao piá que cuidava do animal e, ouvindo um ‘muito obrigado’ adentrei na estalagem... ‘Buenas!’ disse ao bugre velho que servia atrás do balcão. ‘Buenas tchê! Que vai beber?’... Bebi, comi e joguei, e na noite me aconcheguei nos braços da prenda mais linda que vi naquele lugar. Os dias se foram passando e meus tostões escorrendo por talhos abertos na bolsa pelas gurias, bebidas e apostas.

Certa feita, ao chegar no balcão, o bugre de chofre falou: ‘Olha, seu moço, o patrão quer lhe ver agora mesmo.’ Subi a escada angustiado, fazia dias que pendurava e o dinheiro já acabara, não havia de onde tirar. Cheguei na porta de carvalho, com dois negros guardando o batente. Com cara de poucos amigos, entrei sem nada dizer. E lá dentro me deparei com um escritório amplo, paredes forradas com muito veludo cor de carvão. Afora isto havia uma mesa, meia dúzia de cadeiras e um punhado de velas de cera, espantando a escuridão e um sujeito todo guapo, de chapéu, terno e sapato sentado feito um rei. E uma china vestida com saia de chita florida, lhe servia uma bebida, e então ele falou: ‘Eu já tive muitos nomes, habitei muitos lugares, Jerusalém, Roma e Pequim... mas tu, querido guri, por enquanto e por aqui, podes a mim referir-se como Luís Cifério, teu ilustre anfitrião.’

Senti meu sangue gelar, onde é que eu fora parar... embaixo das barbas do Canhoto! Deus me livre de tamanho desgosto. Após meu momento de espanto, chamou-me logo a um canto e a meia voz me falou: ‘ O que deves, para mim não é nada, mas não cheguei onde sento perdoando alguém por algo. Portanto tenho uma proposta, atentes bem e se não gostas, trates logo de opinar. Como corajoso jogador foste, te dou uma chance no truco para tua dívida pagar, mas se perderes, tua alma perdes, sem ter o que argumentar. Então, que me dizes, tchê?’ Sem nem pensar eu respondi... ‘Se perder eu me dano, e se vencer não ganho nada, de onde tiraste esta traquinada ?

Com um sorriso o capeta tossiu um pigarro e disse: ‘Que acordo te satisfaz?’ ‘Já que é minha a alma em jogo, Quero esta casinha ajeitada e uns trezentos anos de jornada neste sem-fim pampa da vida.’ ‘ Isto mesmo pode ser - ficou o capeta a dizer - pois nestes anos de jogatina, ninguém mesmo se atina a no meu jogo vencer. Que fique assim o acordo: se perder no truco a partida, perde a alma e perde a vida, e se nele te sais bem minha estalagem e mais tens...’

Começando o jogo do truque, vencer honesto não pude, pois o senhor da mentira, a cada carta que saía tinha maior para cortar. Perdida a primeira perna, enchidos de novo os copos, a planejar comecei para minh’alma resgatar. Se do engano ele é o rei, aqui por dentro maquinei, o que nos certo parece, a ele não apetece. Então ‘hombre’ não demores, puxes facão, chames seis, suba na mesa de vez e insultes a mais não poder. E nessa grande baderna, puxei a segunda perna e então me assosseguei.

O jogo estava empatado, e o chifrudo todo irado, vermelho de raiva tremia e eu por meu lado ria intentando mais lhe ofender. Começando assim a ‘nega’ insultei mais o Perneta para os tentos ganhar. Chegamos juntos ao onze e o coisa ruim nem de longe pensava em arregar. O que ele nem sabia é que de fato eu ia a última carta jogar...Fazendo cara de enjoado, cuspi de lado o cigarro e pelo canto da boca falei: ‘Guampudo, diabo safado, me deixaste assustado quando para isto me chamaste, tu jogas feito criança, de ganhar ainda tens esperança? Tires da cara o escárnio, pois sabes, és um coitado, e vais cedo perder. Duvido mesmo que lembres o nome que há pouco falaste, que a este jogo chamaste com toda a tua presunção. Fala, fala chifrudo! Pões de lado tua cara de poltrão ignorante, conjugues o verbo, ruminante...duvido que lembres ainda...’ O diabo, nervoso soltando fogo pela venta, vermelho igual uma pimenta, não podendo suportar a afronta, berrou a plenos pulmões: ‘...É TRUCO!!!’ De pronto logo emendei: ‘Não falei que és um chucro ? Em mão de onze chamas truco, e ainda te arrogas a senhor do mundo... Vais embora da minha casa, pois não suporto gentinha bancando almofadinha, querendo amofinar. Não esqueças teu casaco, tua galocha e guarda-chuva, pois se um dia aqui voltas, te solto os cachorros às costas e verás o que é penar.’ Dito isto, o capeta muito roxo e envergonhado de ter sido tapeado, fedendo a enxofre então, foi para o inferno se embebedar.

Desde então tenho vivido neste palácio formoso, plantando fel, colhendo ouro, portanto, estimado guri, nunca mais me preocupei, pois se o diabo derrotei não é um mero fedelho, recém-saído do cueiro que vai me amedrontar. Faz o seguinte, piá, roda o mundo umas dez vezes, aprende com gente malandra, conta anos como meses, acumula mais que esbanja, compra a anu e vende a franga e depois de tudo isto, sonhes em me desafiar. Mas se antes disso desistir, faça lá o favor de vir volta e meia me visitar. Gostei de teu jeito frangote, e se não fosses tão novo, te botava no meu povo para aqui trabalhar.

Aproveitando a deixa, quando estiveres saindo, pede à Maria o cachimbo e uma cuia de chimarrão.”