UMA 'MANTA'
UMA “MANTA”
Manta no palavreado sertanejo de minha infância era quando um mais esperto passava o outro para trás numa negociação. Ninguém roubava de ninguém, mas tinha aquele gosto de passar a tal da “manta” em alguém.
No sertanejo não tinha comércio como hoje; trocavam-se dois bezerros numa vaca leiteira, dois potros numa mula discanelada, réstias de alho ou cebola a troco de uma galinha caipira, um dia de serviço a troco de uma dúzia de ovos reluzentes e azuis...
Volto ao meu pai. Montou nossa família como o último da linha de leiteiro, como o mais perto do fim daquela serra infinita. Meu pai era daqueles que achava que era malandro, mas sempre tinha alguém que passava “manta” nele. Mesmo assim dava gostosas gargalhadas. Como ele mesmo dizia: Se levou um bezerro, a vaca vai ficar prenha de novo!
Meu pai teve tempo para viver.
Hoje, tenho lá meus cinqüenta e tantos e vejo uma cobrança danada em fazer exames preventivos, ter o dinheiro em espécime, ser obrigado a ver meu filho vendo televisão, comprando filmes paráguas e não temos mais tempo para viver. Somos hoje, na essência do ser, filhos do capital e não tem nada que vai mudar isso. Vivemos da mídia como se notícia ruim fosse alimento. E meus filhos, e a professora de meus filhos, o próprio secretário da educação de minha cidade, o prefeito, o deputado, o senador... Tudo parece um raio, que não me acerta, mas avisa que está próximo. E o raio é ligeiro como deve ser nossa minúscula vida correndo atrás do consumo.
Volto a meu pai. Antes de morrer, colhemos mil sacas de café e comentei com ele que não dava para comprar uma caminhoneta nova e ele respondeu garantido: - Mas dá para comprar um cavalo bem arreado, não dá? Esse foi meu pai. Inda bem que não viu a “manta” que o capital está passando no ser humano.
JOSÉ EDUARDO ANTUNES