VELORIO DO BODE NO CEMITÉRIO

Zé Coragem vivia arrotando bagaços, afirmava que enfrentava almas penadas lobisomem e outros fantasmas que povoava a crendice popular do pequeno povoado onde nasceu. Daí o sobrenome coragem, mas no fundo não passava de um borra botas medroso. Só que, naquela terra de gente simples, conseguiu impressionar seus conterrâneos e ganhou fama. Embora nunca provasse a ninguém a sua famosa coragem.

O provado era pequeno um núcleo com meia centena de casas simples de chão batido, sem energia elétrica, ruelas estreitas e desordenadas. No centro duas vendinhas concorriam disputando a clientela, ou seja, a freguesia, no dizer matuto. Distante da cidade que sediava o município, todos os moradores da área rural nas redondezas se dirigiam ao povoado a busca de bens indispensáveis ao consumo. Nem sempre encotravam tudo que era necessário, o único item que nunca faltou foi à dita cuja, aquela que gato não bebe a danada da cachaça, que inclusive a mulher do Zé a chamava de urina do diabo, maldita pinga.

Os habitantes do lugarejo embora analfabetos em sua maioria, sempre muito unidos e disciplinados. Como acontece em toda comunidade, tinha seu líder, coronel Juca Taboca, homem rude, mas, com a visão voltada sobre as questões sociais prevendo um crescimento ordenado. O respeitado coronel construiu a igrejinha do lugarejo na periferia visando um futuro promissor. Pelo padre que a cada semestre comparecia na localidade para as celebrações, o templo deveria ser erguido no centro do povoado, mas, como líder e maior beifeitor da obra prevaleceram à opinião do Juca Taboca o construindo no local onde já havia um campo de futebol cujo terreno foi doado por ele, que tentava de certa forma ordenar o crescimento da comunidade. Junto, construiu o cemitério o sonho almejado de todos os habitantes. Uma solução no translado dos falecidos que eram conduzidos nos ombros, a cinco léguas, para o sepultamento na cidade.

Aos poucos a área foi sendo povoada com casas simples de alvenaria, obedecendo às regras urbanas. Havia grande movimento nos finais de semana quando os consumidores vindos de todas as direções se aglomeravam nos pequenos redutos comerciais à busca de querosene fumo sal e a tradicional aguardente.

Zé Coragem cujo casebre fazia parte do núcleo central, não perdia tempo e ficava todas as noites de uma a outra venda contando vantagens e requerendo assombração, pegando tamanduá a unha seca e provocando intriga entre os moradores. Uma boa tática para filar goles de pinga dos fregueses.

Os vendeiros eram amigos e se davam muito bem, casados com duas irmãs conviviam com se fossem irmãos. Indignados e cheios com a exploração de Zé Coragem combinaram em lhe dar uma lição. Preparou um caixão preto enfeitado com galão dourado, acharam um bode recém nascido morto, o colocaram dentro dele, e armaram um velório à porta cemitério situado à margem da principal estrada, por onde locomovia o maior número de transeuntes. Noite sem luar, povoado as escuras, apenas os filetes de luz das lamparinas escapavam pelas frestas das pobres residências. As duas vendas cada uma com seu lampião a querosene pendurado no teto sobre o balcão, onde ficavam a balança de duas conchas ladeada por cargas de fumo de rolo, rapaduras, cestas de ovos empalhados, pencas de bananas etc.

Meio de semana pouco movimento, meninos buscando dois ou treis dedos de querosene. -Mãe falô qui manhã trais ovo mode paga, mandô rumá só treis dedo pruque tem só treis galinha botano asveis arguma faia de botá!

-Ah pai chegô do sirviço e viu qui tem difunto na porta do cimintero, ma tá suzim tem ninguém lá não, pai viu mode craro de vela lumiano caxão, falô tumem qui deve de cê rico mode cu caxão é de pano bão infeitado cum tira dorada!

Doutro lado da rua na porta da outra venda um pequeno grupo de curiosos se aglomeravam discutindo a noticia fresquimha vinda através dos transeuntes que por La passaram vindos da área rural a busca de alguns bens de consumo. Cada mensageiro transmitia a noticia com mais sensacionalismo e convictos que se tratava de um defunto nobre. Zé estava eufórico dizendo a possibilidade de ser um fantasma, uma vez que ninguém deixaria um ente querido sozinho no cemitério.

-Medo ieu nunca tive mai hoje to bão não, tô cum dor no istamo acho qui o cumê da janta num feis bem não! Num tivesse passano mar ieu já tinha ido La mode vê qui diabo de difunto é esse.

-É, mais num é ocê qui requer sombração, e já muitô inté no demu? É ocê memo qui tem de discurbri pra nois qui falicido misterioso é esse, que ninguém sabe donde veio. – Um dos vendeiros fechou suas portas e se juntou ao grupo logo outro também fechou trazendo o lampião pra rua onde quase a totalidade dos moradores se reuniu, mas ninguém se atrevia a acompanhar os dois comerciantes que se depuseram a ir ao local. Saíram todos de fininho restando apenas os dois e o Zé Coragem. Desconversando ele quis fugir também, mas lhe ofereceram um litro de cachaça para acompanhá-los sabiam que ele não resistiria à oferta. – Intão já cocêis morre de medo e num tem coraje mode i suzinho mindá logo essa danada qui ieu cumu num tem medo levo oceis lá. ´- Pela metade do trajeto meio litro da pinga já havia sido consumida por ele, uma forma de espantar o medo. Bêbado como um gambá ao chegarem ao cemitério notaram que apenas uma vela permanecia acesa. - E ai Zé tu levanta a tampa do caixão? -Num posso tô cus dedo machucado-, dexa ieu bebê o resto da pinga qui é pa mode num tê pirigo de pegá duença, a gente num sabe de que esse difunto morreu né memo, siguro morreu de véi. – Assim de uma só mamada ele ingeriu o que restava no litro. Os dois companheiros levantaram a tampa do caxão, por ele, pareceu estar vazio; muito bêbado não viu o filhote de bode. -Num falei cocêis qui sombração tem medo do degas aqui ta veno cu difunto correu do Zé Coraje!- Ao pronunciar estas palavras ele caiu desmaiado com o efeito do álcool. Os dois companheiros o colocaram no caixão abriram o portão e o desceu numa cova que havia abatido pela enxurrada dando se a impressão que estava intacta. Em seguida voltaram à suas casas.

No dia seguinte La pelas tantas, sol quente pra caramba ele acorda mais suado que tampa de marmita, assustado sem se lembrar de nada, meteu os pés na tampa do caixão se levantou apavorado indo pra casa. Passando na rua frente às vendas os dois vendeiros de pé cada na sua porta:- que isso Zé parece apavorado? -Foi nada não... Sonhei cum difunto essa noite fui La no cimintero cunfiri. Ocêis num vai acriditá nadivê qui La tem um caxão cum bode morto dento! Só fartava mais essa interrá bode no cimintéro de gente, inté parece coisa do dêmo

Geraldinho do Engenho
Enviado por Geraldinho do Engenho em 10/10/2011
Reeditado em 10/10/2011
Código do texto: T3268324
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