GUCHA, O MATREIRO
Para começar o causo é necessário deixar claro o que significa a expressão "matreiro".
Durante grande parte do século XIX e do século XX era comum que pessoas da classe mais humilde viessem a sofrer alguma forma de injustiça e, como não adiantaria comunicar às autoridades pelo fato de que as mesmas integravam a classe dominante, o prejudicado decidia fazer justiça pelas próprias mãos, tornando-se um fora da lei, perseguido pela polícia e que vivia às escondidas, deslocando-se de um local para outro por caminhos e trilhas inimagináveis, daí a denominação de matreiro.
Como o matreiro sempre andava sozinho, nunca era confundido com o bandoleiro que sempre se fazia acompanhar por outros que davam a idéia de bando, mas a gênese de um e de outro sempre era a mesma, ou seja, a prática contra eles de algum ato de injustiça.
No sertão tivemos Lampião como o protótipo do bandoleiro. Aqui no sul Talco Cardoso, de São Gabriel, começou como matreiro e depois se tornou bandoleiro.
Pois aqui, estimados leitores, tratamos de uma figura conhecida no terceiro distrito de Canguçu como Gucha, apelido que carregou durante toda sua vida.
Gucha era um homem de origem humilde e vivia na localidade denominada "Faxinal", situada no mesmo distrito antes mencionado.
Ainda na primeira metade do século XX, Gucha enfrentou um sério problema de saúde com um filho seu, recorrendo a uma venda daquelas que trabalhava com secos e molhados, inclusive remédios.
Lá chegando pediu o remédio do qual o filho estava necessitando, mas não lhe foi vendido porque seria fiado e, embora com todas as juras de que o pagamento ocorreria em seguida, mesmo assim o medicamento não lhe foi fornecido.
Diante da negativa do fornecimento do remédio, Gucha, um taura de imponência de monarca, puxou o seu 44 para o "mol da barriga" e disse ao dono da venda e a todos os presentes:
- Meu filho tá doente e aqui não tem homem para impedir que eu leve o remédio que meu filho tá precisando!
Aquilo foi um "Deus nos acuda". Os mais covardes fugiram do local imediatamente, ficando, com o dono da venda, uns três ou quatro que tentaram impedir o desiderato de Gucha que, tirando o revólver da cintura o segurou com a mão esquerda e com a direita sentava o mango nos presentes, este com a parte da argola para baixo, para que a lesão fosse de parar leão onde e quando caísse.
Passados alguns minutos, todos os presentes esborrifavam sangue por onde o mango lhes havia pego e estavam totalmente dominados. O dono da venda, antes arrogante na negativa do fornecimento do remédio para o filho de Gucha porque este não tinha dinheiro para pagar no ato, ficou estendido com o tórax sobre a balança e a cabeça jorrando sangue deitada sobre um dos pratos do apetrecho de balcão.
Então, calmamente, Gucha pegou o vidro do remédio, guardou o revólver no coldre, desvirou o mango, montou a cavalo e se dirigiu à sua residência para aplicar o medicamento no filho doente.
Não deu um tiro sequer, não matou ninguém, mas não abriu mão de levar o remédio, mesmo que para isso tivesse sido obrigado a dar uma surra de mango no dono da venda e nos seus puxa-sacos.
Daquele dia em diante Gucha se transformou em um matreiro, aliás mais um matreiro numa região de Canguçu em que já existiam muitos tipos dessa espécie.
Para sobreviver sem que a polícia lhe colocasse a mão, Gucha era obrigado a andar à noite, descansando durante o dia. Algumas vezes era obrigado a praticar pequenos furtos para obter alimentos para si e para sua família. Substituiu a enxada e o arado pelo cavalo de montaria, a adaga e o S&W calibre 44. Munição não poderia lhe faltar nunca, mas sempre tinha um amigo que lhe fornecia.
O interessante é que o matreiro sempre gozava da simpatia de muitas pessoas, algumas até abastadas que o presenteavam com víveres, cavalo de montaria e outras coisas necessárias para seguir sua jornada.
Ocorreu que, como já disse em outro causo, o terceiro distrito, como todo Canguçu, sempre foi um reduto do Partido Republicano, onde o positivismo era como uma religião, tamanho o fanatismo a que seus adeptos evidenciavam.
Gucha estava mais para maragato do que para chimango, ou seja, mais para Federalista do que para Republicano, principalmente pela sua origem humilde, mas num dado momento de sua íngreme jornada como matreiro, acabou por receber das principais lideranças dos chimangos daquela região uma proposta, ou seja, se aderisse aos chimangos teria uma vida melhor, além de não ser mais perseguido.
Tirar o lenço colorado do pescoço e colocar um lenço branco em seu lugar não era uma tarefa fácil, mas as dificuldades falaram mais alto e Gucha o fez, tornando-se uma espécie de "ajudante de ordens" do subdelegado daquele distrito, homem frio, calculista e que necessitava de alguém para fazer os serviços não amparados pela lei; os ditos "serviços sujos".
Nesse ponto começou uma nova etapa na vida de Gucha, com as costas quentes pelo subdelegado e demais próceres do Partido Republicano da região, onde foi levado a fazer muitos serviços, de maneira especial contra os maragatos, alvos permanentes dos chimangos.
Mas isto será objeto de outros causos...
Gucha faleceu com mais de 70 anos, mudo, capenga de uma perna e sem movimentos numa das mãos, justamente a direita sempre utilizada nos serviços escusos, tendo sua mobilidade garantida por uma égua gateada, mui franzina.
Esta foi a história de mais um matreiro!