Quem não tem juizo obedece

João parou diante da peneira dependurada à parede e a ajeitou como se fosse uma tela de Picasso. Pegou o machado jogado sobre o monte de lenha, que havia preparado logo cedo, e pendurou-o do outro lado da varanda, junto às ferramentas de trabalho. Gostava de ter as coisas sempre bem organizadas. Ficava nervoso quando a Mercedes deixava algo fora de lugar.

----Não se esqueça de conferir o jogo! –Gritou Mercedes, lá da cozinha.

----Pode deixar, não vou esquecer não. –Respondeu João.

Mercedes veio até a varanda e ficou observando o marido, que com os pés, cuidadosamente, tentava desmanchar um formigueiro que se formara próximo a mexeriqueira. Olhou tudo em volta onde apenas o silêncio era o que tinham todos os dias por companhia. Estavam morando ali, depois que o João se aposentou, há pelo menos dez anos. Comentou várias vezes com a irmã, que morava em São Paulo, que daria a vida caso fosse preciso para sair daquele lugar.

----Vê se não demora muito. Não gosto de ficar aqui sozinha. –Gritou Mercedes para o marido que já se preparava para sair.

João iria até a cidade para comprar algumas coisas e aproveitaria para conferir o jogo da mega sena que havia feito no começo da semana. Estava acumulado em quase trinta milhões.

----Lembra daquele carro que vimos lá cidade com a placa de vende-se? –Perguntou o João.

----Nem me fala! Que coisa mais linda meu Deus do céu! –Respondeu Mercedes.

----Pois então, hoje eu vou comprá-lo.

----Comprar com o quê? Nós não temos dinheiro nem para comprar uma carriola. –Brincou Mercedes.

----Acontece que eu tenho quase certeza que vou ganhar na mega sena. –Retrucou João.

----Shiii! Isso eu já venho ouvindo há uns dez anos. Desde que se aposentou você me fala que um dia ainda acerta na loteria.

----Vamos combinar uma coisa. –Propôs João à Mercedes.

----O quê?

----Se por acaso, daqui de cima, você me ver lá embaixo na estrada, chegando com aquele baita carrão, pode botar fogo na casa que com certeza eu acertei na mega sena.

Mercedes desatou a rir.

----Não estou brincando não! Estou falando sério! Se você me vir chegando de carro, pode passar a mão no galão de gasolina, que está ali no canto da parede, e mete fogo na casa. –Insistiu João.

----Rapaz não brinca comigo não. Você sabe muito bem que sou meio doida. Não vou desgrudar os olhos da estrada. Se eu vir você chegando naquele carrão que eu sonho todos os dias, não vou pensar duas vezes, não; jogo gasolina na casa e meto fogo.

----Pois trate de preparar o galão de gasolina e a caixa de fósforos! Daqui no máximo duas horas estarei de volta, e montado naquela máquina.

----Vai sonhando! Sonhar não faz mal a ninguém mesmo! –Brincou Mercedes, enquanto enxugava as lágrimas dos olhos, que vertiam de tanto rir.

João se despediu e desceu a estradinha de terra batida que o levaria até a cidade. Um trajeto que caminhando um pouco ligeiro daria uns 40 minutos.

A Mercedes ficou por ali cuidando dos afazeres. Vira e mexe saía até a varanda e esticava os olhos na estrada, que lá de cima dava para vê-la sumir por de trás da mata fechada que fazia divisa com o outro sítio.

Ficou sonhando com toda aquela dinheirada da mega sena, que estava acumulada a mais de um mês.

Morria de vontade de voltar para São Paulo e morar próximo aos filhos e aos irmãos que residiam na zona leste. O João, quando se aposentou, inventou de vender a casa que eles tinham em Itaquera para, com a metade do dinheiro, comprar aquele sítio. No começo até que foi legal, todavia com o passar do tempo foi enjoando. Ali não acontecia nada. E para quem está habituado com a vida agitada da cidade grande, dificilmente se acostuma com aquela calmaria toda. Em alguns momentos tinha a impressão de que somente eles existiam sobre a face da terra. Várias vezes pensaram em voltar, só que a outra metade do dinheiro, que haviam guardado, há muito se acabara, e o que é pior; enquanto as casas onde moravam antes, com a chegada do metrô, supervalorizaram tremendamente, o sítio, ao contrário, em matéria de dinheiro para a venda pouco valorização obteve. E quando pensavam que se voltassem teriam que pagar aluguel, de imediato perdiam todo o estímulo de se aventurarem novamente.

Sentou-se na varanda e ficou imaginando o fim de mundo que deveria existir por de trás daquelas montanhas que rodeavam o lugar. A paisagem sumia de vista e não conseguia enxergar uma alma viva a quilômetros de distância. Sentia uma certa culpa por ter permitido que o João tivesse vendido a casinha em Itaquera, que conseguiram erguer com tanto suor no terreno que compraram a prestação quando iniciaram o loteamento. Na época era uma verdadeira birosca o lugar. Não tinha luz elétrica, não tinha água encanada, não tinha ruas asfaltadas, era um fim de mundo de dar medo. Não demorou muito vieram mais e mais famílias e o bairro cresceu rapidamente. Agora com a chegada do metrô o local virou um verdadeiro paraíso.

Seguiu com os olhos um bando de caga sebo que passou voando bem pertinho dali e se acomodou nos arvoredos próximo ao roçado. Estava entretida com o alvoroço que eles faziam quando de repente saltou de seus pensamentos ao ver um carro que vinha subindo a estrada. Pôs se de pé rapidamente e firmou bem a vista pára ter a certeza do que estava vendo. -- Não é possível! Será que estou ficando doida? – pensou com seus botões. Era exatamente o carro que haviam visto dias antes na cidade com a placa de vende-se e que ela sonhava noite e dia em ganhar na loteria para poder comprá-lo. O carro veio subindo, subindo até que a certa altura percebeu que era o João que vinha dirigindo aquela máquina maravilhosa. A pobre da Mercedes sentiu um calor imenso subir pelo corpo e de repente, completamente fora de si, e rindo como se fosse uma debilóide, correu até onde estava o galão de gasolina e feito uma doida varrida esparramou o combustível pela casa toda e ateou fogo. Em coisa de segundos a casa foi tomada pelas chamas.

João encostou o carro um pouco abaixo e subiu correndo o barranco ao lado da casa, que agora se tornara um verdadeiro braseiro. Avistou a Mercedes do lado de fora completamente possessa com o galão de gasolina em uma das mãos e a caixa de fósforos na outra. O João arregalou os olhos não acreditando no que estava acontecendo.

----Você é louca Mercedes? O que foi que você fez?

Logo em seguida o Durvalzinho, filho do prefeito e amigo íntimo do João, se aproximou bufando feito um doido, carregando seus mais de cem quilos. Arregalou os olhos e, assim como o João, também não acreditou no que estava vendo. Apanhou a chave do carro que o amigo havia deixado cair e, ainda pasmo, aproximou-se do barranco onde de um lado estava à casa ardendo em chamas e do outro lado o carrão novo que seu pai lhe dera de presente de aniversário e que por consideração deixara que o João viesse dirigindo.