Desatino em Duas Rodas

O tonante alarme do relógio guardado numa panela embaixo da cama acorda Adinelson, que inicia o dia com a sensação de que havia ainda muito por dormir. Diariamente lamenta, mas levanta, se arruma, toma o café e sai.

O ponto da lotação cheio de pessoas sedentas por um assento vago. Concorrência de nível universitário. Felizes os contemplados na dança das cadeiras. Pequenos sentados, idosos de pé, mulheres grávidas, outras com crianças no colo, quase todos mal acomodados. E vale tudo para não ceder o lugar sentado, disfarçar e olhar pra fora, fingir estar dormindo, fazer-se desentendido. Adinelson às vezes não consegue entrar no ônibus que vem tão abarrotado. Quando entra, sente-se peixe enlatado. Restritos são seus movimentos até descer na estação e embarcar em outro coletivo lotado, depois são mais dois, apesar de morar a poucos quilômetros do escritório em que trabalha.

Em certa ocasião, Adinelson decidiu não compartilhar mais da desventura daquela falta de espaço e, tendo economizado parte do salário, comprou uma bela bicicleta. Vida nova, autonomia e saúde. O jovem não escondia a alegria de sentir a liberdade dali em diante.

Primeiro dia sem ter que pegar o ônibus, a bicicleta verde-esmeralda tinindo quase reluzente no canto da cozinha. Tinha que chover justamente naquele dia? Lamentou Adinelson. E lamentou a semana inteira chuvosa. Dez dias depois é que estreou suas pedaladas.

Um pouco atrapalhado no começo, ruas desertas nas mediações de casa, bom para ganhar confiança. O pé que escorrega do pedal, o quase-tombo, tudo bem, é natural faltar-lhe a prática. Adinelson desce da magrela ao se aproximar do colégio, não quer correr riscos, imagina que pode atropelar um dos vários alunos que chegam naquela manhã, ou cair em frente ao portão perto das garotas, desce e conduz a bicicleta por dois quarteirões. Sentindo segurança o moço põe-se pedalar de novo. A cada esquina ele desembarca e atravessa a rua empurrando a bicicleta, medida de segurança, bom não se sujeitar.

E desce, empurra, desce, empurra. Carros desgovernados, pedestres desorientados, mais carros e pedestres sem rumo certo, desce e empurra.

- Olha o cachorro! Grita o homem na calçada.

- Quê? Adinelson ao chão.

- Pobre animal. Lamenta a mulher que ajuda o rapaz a levantar.

- Estou bem, obrigado.

- Falo do cachorro.

- Claro. Obrigado mesmo assim. E sai esbofeteando a poeira na roupa, e empurrando a bicicleta.

Três quarteirões do incidente, novas pedaladas. A indignação pela má sorte faz Adinelson desafiar a si e contestar o perigo, as pedaladas ficam mais fortes e o arrojo do rapaz não passa da Avenida São João:

- Olha o carro! Avisa a idosa no canteiro.

- Quê? Adinelson sobre o capô.

- Coitado. Não teve culpa. Lamenta a mulher que ajuda Adinelson com cuidado.

- Não, tudo bem.

- Falo do motorista.

- Claro. Obrigado do mesmo jeito. E se compromete a pagar os danos.

Com fortes dores nos joelhos, trêmulo do susto, a verde-esmeralda menos verde, Adinelson caminha dois quarteirões. Sobe na bicicleta, pedala devagar, desce a cada esquina, empurra, e desce, e empurra. Chega atrasado ao trabalho, mas não conta sua saga, acata a advertência do patrão.

Expediente longo, início de noite, chuva fina. Registra o ponto e sai, queixa-se Adinelson, não tinha que chover.

Cauteloso, o moço guia devagar sua magrela sob a garoa. Percorrendo as mesmas ruas no caminho de volta, atravessa a Avenida São João, vence o trauma, infla o ego e segue. Cantarola pelas beiradas do asfalto, os pneus giram no ritmo. Canta um bolero, os pneus giram devagar, harmoniosamente. Balada, pneus ligeiros, samba, pneus requebram.

- Olha o carro!

Adinelson desvia.

- Olha o cachorro!

- Caim, caim, caim. Pobre animal.

Di Souza Porã
Enviado por Di Souza Porã em 20/09/2011
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