ZÉ MARIA E LAMPIÃO

A vida nos traz muitas surpresas. Jorgeval era um professor da rede pública de Sergipe. Ele trabalhava no interior fazia tempo. Conhecia os sertões da fronteira de Tobias Barreto e Poço Verde como a palma de sua mão. Depois da chuva, a terra seca, e com ela vai a esperança de muita gente. No passado a coisa era bem pior. Esses sertões de caatingas e pedras grandes ainda nos contam um pouco da lida do homem que morreu em Angico, o Lampião.

Jorgeval vinha de uma escola do interior para a sede do município de Tobias. Ao seu lado, sentado, vinha um homem idoso e bem conservado beirando os 90. Com o balanço do carro Jorgeval desperta, e escuta, sem intenção, uma prosa entre o velho Cocada e um rapaz chamado de “Cosminho do jogo do bicho”. Este fazia banca na Rua Itabaianinha todos os dias, desde que sua amada mãe faleceu vítima da dengue.

- Cosminho põe um real na cabeça! Vai dar cobra! Ontem sonhei com uma jibóia que saía da Lagoa da Porta.

- Seja feito conforme sua vontade! Anotou Cosminho com dificuldade devido o balanço do carro.

- Rapaz, vocês moços de hoje vivem na moleza. Viajam para todo lugar na mordomia. Não sabem o que é poeira na cara ou o que significa andar pelas estradas desse sertão.

- Cocada como era na sua época? Perguntou curioso Cosminho.

Cocada meteu o dedo nas narinas e tirou uma meleca colocando-a no assento estofado do carro. Ajeitou-se no banco, e depois de apalpar suas genitálias, o velho tira o chapéu, mostrando a testa rosada para cosminho.

- Na minha época a coisa era muito difícil; o sofrimento era grande.

- Como assim Seu Cocada, eu não entendo?

- Vou te contar uma estória.

“Houve uma época em que Seu Virgulino passava pelo Povoado do Peba. Esse era o nome do atual povoado Monte Coelhos. Lampião tomava umas com seus cangaceiros na mercearia que ficava na esquina da praça onde está a entrada da estrada que vai para a Lagoa do Soares. O estabelecimento pertencia a Seu João. Era uma segunda feira. O povoado estava quase deserto quando as tropas de Lampião entraram no Peba.

O velho Cocada ficou com o olhar distante com o rosto voltado para a paisagem seca cheia de macambiras e juremas de todo tipo. Seus pensamentos voltaram ao passado de sua mocidade.

- Chega minha fia! Passa para dentro!

- O que foi mãe? Disse a moça Telma assustada.

- É Lampião minha fia que chegou!

- Lampião? Quem é Lampião?

- O cangaceiro minha fia.

A menina entrou em casa e correu para a janela para gretar por entre as brechas. Lampião entrava no Povoado Peba com seus homens. Eles formavam uma tropa de quarenta e cinco cangaceiros, todos armados de espingardas e facões. Não dava muito para ver porque a luz era fraca. Os lampiões de querosene não tinham tanto brilho como o cangaceiro.

- Mãe!

- Sim!

- Qual deles é o lampião?

A mãe de Telma olhou por um instante acompanhando a tropa, mas não o reconheceu. Lampião acampou três dias nos arredores do Peba na baixada entre a Rainha dos Anjos e o povoado. A água da terra era muito boa, mineral de natureza, atraía muitos viajantes, entre eles estava o famoso Zé Maria.

- Zé Maria! Que bom que você chegou! Sabe quem está na baixada?

- Não.

- É Lampião. Todo mundo está com medo, sei lá, eles podem fazer um malfeito.

- É Nestor, você tem razão. Chame por Deus, homem! Ele pode nos ajudar.

No outro dia de manhã cedo, Bartimeu, um cangaceiro de Lampião foi ao povoado pegar mantimentos para a tropa: farinha, feijão, fumo, carne seca, e outras coisas. Com ele estavam outros três homens, todos armados.

- Bom dia!

- Bom dia, moço. Respondeu Zé Maria. O herói do Peba tomava a frente quando o assunto era problema.

- Viemos buscar provisão para o patrão. Disse Bartimeu com voz decidida.

- Que patrão? Perguntou Zé Maria.

- Rapaz, não seja besta! Vá chamar o dono da venda!

- O dono sou eu. Continuou Zé Maria mentindo para o cangaceiro.

- Então, moço, encha o saco de feijão, farinha, fumo de rolo, e toda a cachaça que você tiver!

- Como? Sem cachaça nós não ficamos! Reclamou o corajoso Zé Maria.

- Seu atrevido. Respondeu Bartimeu. Bartimeu não era um homem violento, embora fosse cangaceiro, tinha o moço profunda devoção pelo Padre Cícero do Juazeiro.

- Salve meu Padin do Juazeiro, vou derrubar um louco da vida! Após sua breve e fervorosa prece, o cangaceiro abaixa o fogo e tira a mão do gatilho da espingarda.

- Tá bom, moço, ponha o que tiver.

Zé Maria pôs feijão, um saco, farinha outro saco, dois rolos de fumo, e cinco garrafas de pinga serrana.

- Só isso?

- É o que temos moço.

- Que o padin te dê em dobro!

Quando algum povoado atendia bem o coronel e seus homens, eles davam proteção à comunidade. Mas, lampião não aceitava desfeita. Eram oito horas da noite de terça feira quando lampião e seu bando chegam à porta da capela onde estava sendo rezada uma missa. Os tiros estalavam aturdindo a todos. Homens, mulheres e crianças saíram em uma correria medonha. O corajoso Zé Maria foi ter com o cangaceiro.

- Meu caro Virgulino! É assim que um homem de grande coragem e bravura ameaça a capela de Maria?

- Não seu moço. Minha pessoa não veio desafiar as forças da Santa, venho em busca de Zé Maria que me fez um agravo.

- Zé Maria disse: “Sou eu”.

Sob os gritos do povo apavorado lampião leva Zé Maria amarrado pelas duas mãos até a baixada. No acampamento deixaram o homem preso e foram ver o que fazer com o coitado. O seqüestro de Zé Maria abalou não só o Peba, mas, toda a Vila de Campos. O quartel que ficava na Sete de Junho foi acionado e tropas a cavalo foram no encalço do cangaceiro. Telma, no povoado Peba, acendia velas a Santa Maria para livrar a pobre alma de Zé Maria.

- Será que Zé Maria sai dessa? Perguntou o cabo Freitas ao soldado Chico.

- Acho que não. Eu estou indo com a tropa para não descumprir as ordens, mas, não vou trocar tiro com Lampião, não, tá doido!

Naquela época ninguém ousava desafiar o grande cangaceiro do sertão. Sendo assim, o futuro de Zé Maria era incerto. Então o peba inteiro se uniu para rezar pelo corajoso Zé Maria. Havia uma rezadeira no povoado que via o futuro na borra de café. Na visão da mulher, Zé Maria seria esfaqueado. A notícia correu o povoado apavorando ainda mais as pessoas. Na manhã do dia seguinte, os sete maiores cangaceiros de lampião e o próprio formaram um tribunal sob os olhos dos outros homens para julgarem o agravo de Zé Maria.

- Quer dizer que seu nome é Zé Maria! Um homem macho com nome de mulher! Disse seu Virgulino.

- Não de mulher. De uma Santa.

- Mas, você não é santo seu atrevido. Continuou lampião.

- Sua pessoa acha certo maltratar essas pessoas?

- Deixa de ser insolente! Eu não machuco gente inocente! Agora sua pessoa vai pagar o agravo que me fez. Lampião saiu e desfez o conselho. A decisão foi amarrar um peso de trinta quilos ao pé do homem, e soltá-lo na mata, depois da estrada que vai para Olindina na Bahia. Fizeram a bola de ferro e a prenderam ao moço. Depois um cangaceiro que atende pelo nome de Junco vazou os olhos do rapaz. Nas matas de macambira com os olhos vazados, soltaram o homem preso à 30 kg de ferro. O coitado morreria em poucos dias.

“Foi uma decisão acertada, patrão. Servirá de exemplo para todos que desejarem enfrentar a força do cangaço”. Disse Corisco segurando seu punhal na mão.

A ferida dos olhos doía mais que o peso amarrado a seus pés. As correntes fizeram feridas em torno do tornozelo direito de Zé Maria, que andava mancando pelo mato entre Itapicurú e Olindina. As horas passaram e se transformaram em dias. Faminto e com fome, andando em círculos, Zé Maria se senta no chão numa fria noite e pede a morte como alívio.

- Mãe! Sonhei com Zé Maria.

- Foi minha fia?

- E como foi?

- Ele estava vindo para a casa. Dois homens o segurava, pois, ele estava muito ferido.

- Que bom minha menina! Que Nossa Senhora o proteja!

A volante formada pelos soldados da Vila de Campos não alcançaram a tropa do cangaceiro que desaparecera como fumaça. E não sabiam do paradeiro de Zé Maria. Buscas foram feitas, mas, nada de acharem o corpo ou evidências de seu estado.

Amanhece o dia. Os pássaros cantam alegremente na mata fechada do Norteste da Bahia. Dentro dela, um pobre herói sergipano, filho legítimo da Vila de Campos, padece de fome e de infecções por todo o seu frágil corpo. Por acaso o homem ouve barulho de água corrente. Por intuição percebe que há um riacho por ali. Tenta selevantar, contudo, é inútil. O rapaz se arrasta com dificuldade até ouvir mais forte o barulho das águas. A sede era grande, a dor nos olhos maior ainda. Zé Maria bebe água com cuidado, lava suas feridas. Ele sabia que não tinha muito tempo, suas forças estavam indo embora. O barulho das asas dos urubus que voavam pelo local era um mau presságio. A morte estava chegando. Deitado à beira do riacho, Zé Maria invoca a Santa dos sertanejos:

“Salve minha mãe! Ave Maria!

Sou pobre pecador preso ao ferro do cangaço.

Não tenho muita virtude e mal sei escrever meu nome.

Não fiz muita bondade, mas, também não fiz muita maldade.

Rogo-lhe seu socorro, se for de sua vontade.

Não me deixe morrer sem ser enterrado!”

A prece lhe tirou mais energia fazendo-lhe cair inconsciente.

- Telma! O que foi?

- Num sei mãe. Sinto uma dor no peito muito forte.

- Acho que deve ser coisa de moça que está virando mulher. Disse sua mãe.

Em pouco tempo, o povoado não lembrava mais de Zé Maria nem de Lampião. Todas as segundas as pessoas desciam a feira de Tobias para fazer seus negócios. É assim a vida, quem vai, foi; quem foi não está mais aqui. E o resto, todos nós sabemos”.

- Mas, Seu Cocada; e Zé Maria, morreu? O velho sertanejo marejou os olhos de lágrimas e tremeu os beiços.

“A lua estava alta no céu quando Zé Maria despertou de seu passamento. O vento frio do sertão não mais o incomodava. Ele olhou para os lados e viu que via. Pegou em sua perna e não havia peso preso. Ao seu lado, estava uma figura de uma sereia que havia saído do riacho. Ela era toda dourada. A luz da lua fazia o dourado ficar mais brilhoso. Ela estava deitada à beira do riacho. De sua boca saía um cântico lindo, lágrimas caíram de seus olhos. O rapaz via tudo atônito, sem nada entender. A mulher sereia, calmamente, desce às águas formando um redemoinho; dele pululavam peixes muitos. Alguns caíram no colo de Zé Maria. “Zé, mate e coma!”

- Quem fala comigo?

- Sou eu. Você não percebe a fumaça do cachimbo?

- Sim, tem cheiro de alfazema.

- Volte ao Peba!

- Para que meu veio, aqui, tá tão bom!

- Telma espera por você.

A viajem de volta foi muito rápida. A estrada estava boa e o rapaz com novos olhos conhecia aqueles caminhos como a palma de sua mão. Numa manhã de sábado, Zé Maria chega ao Povoado Peba e é recebido como um herói. Telma vem ao seu encontro trazendo em suas mãos um prato cheio de cocadas que ela mesma fizera. As pessoas deram risadas. Daquele dia em diante, Zé Maria, se tornou em Seu Cocada. Um homem que nunca mais enfrentou Lampião, entretanto, ninguém daquele lugar conheceu rezador mais poderoso e amoroso como ele. Vinham pessoas de todos os lugares falarem com Cocada. A luz de sua vela e a fumaça de seu cachimbo ficaram conhecidos por toda a antiga Vila de Campos”.

Os passageiros do ônibus se calaram. O veículo passa por um riacho de águas cristalinas perto da entrada da Rainha dos Anjos. Ouve-se um assobio vindo de lá. E logo depois o barulho de água corrente. Cocada põe o chapéu de volta a sua cabeça branca, baixa a mesma, e agradece a Deus por tudo. Ninguém quis perguntar nada. A viagem prossegue tranqüila; cada um desce em seu ponto; cada um com seu destino...

Jorgeval desceu em Tobias Barreto. E de lá foi para Aracajú.

Roosevelt leite
Enviado por Roosevelt leite em 31/08/2011
Reeditado em 27/12/2019
Código do texto: T3193487
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