CARCAMANOS NO TERCEIRO DISTRITO
* Aos que vieram do Sul da Itália (carcamanos).
Por volta do início do século passado, chegou ao terceiro distrito de Canguçu, vindo da Calábria, sul da Itália, um homem de perfil inusitado.
Jovem ainda exercia a medicina como profissão e dentre tantos outros talentos, fazia por prazer a odontologia e a prótese dentária, sem prejuízo dos conhecimentos que detinha na área de engenharia e mecânica.
Seu passado era bastante intrigante!
Por que um jovem médico havia abandonado o Primeiro Mundo para vir primeiramente para o interior de Pelotas, hoje Capão do Leão e, depois, para o interior de Canguçu, cerca de 60 km da sede, à margem esquerda da estrada intermunicipal do Passo do Marinheiro, que liga com o limítrofe Município de Encruzilhada do Sul?
Respostas para indagações de tal natureza nunca foram dadas.
Foi na localidade de Boa Vista, logo no que passava a venda de José Maria Dutra, que esse personagem intrigante adquiriu uma área de terras e implantou uma fortaleza, onde exercia suas atividades profissionais. A edificação era para mais de meia parede de pedra bruta, o que dava uma idéia do aspecto portentoso do prédio.
Com o tempo se ficou sabendo que na Itália ele havia deixado dois filhos, Demóstenes e Aristóteles.
Nunca se soube se chegou casado ou não aqui no Brasil. Quando chegou ao terceiro distrito de Canguçu se fazia acompanhar por uma elegante senhora, dotada de fino trato, chamada Eurides, com quem teve um filho e duas filhas. O primeiro filho brasileiro se tornaria um famoso cirurgião dentista e o precursor da ortodontia na região de Pelotas.
Com algumas criadas teve outros filhos, não se sabendo ao certo quantos, mas mais de três.
Com o passar do tempo houve um desgaste natural de seu casamento com Eurides, mulher de elegância e tratos europeus, o que fez com que fosse abandonado por ela que acabou transferindo sua residência para a cidade de Pelotas, juntamente com os três filhos do casal.
Restando só o intrigante médico se viu atraído pelos dotes de uma moça que havia contratado para cuidar da farmácia de sua clínica, vindo a tornar sua companheira, com quem teve três filhos, todos homens, um deles, o mais moço, o meu pai. Essa mulher era a minha avó.
Contam os mais velhos, que esse homem lidava com ciências ocultas e que detinha poderes especiais. Outros se contentavam com a explicação de que ele maçom, operativo.
Na Revolução de 1923 ele se encontrava na frente de sua casa, juntamente com sua amada e os filhos, além da criadagem que lhe rodeava, quando avistou uma poeira na estrada para as bandas de Encruzilhada do Sul, mas já no território de Canguçu.
Logo em seguida esse homem de comportamento estranho ficou sisudo e calado, o que obrigou, pelo respeito que todos lhe devotavam, que os demais entrassem em absoluto silêncio quebrado somente pela sentença que sairia de seus lábios, alguns minutos depois, em tom sussurrante como sempre falava: - Naquela poeira vem a minha morte! É um piquete revolucionário que vem para me matar, mas se eu conseguir colocar a mão no tiro do buçal do cavaleiro que ponteia o piquete tudo estará resolvido.
Daquele momento em diante a tensão tomou conta de todos os familiares e auxiliares, pois seria uma catástrofe se algo viesse a acontecer para aquele homem amado, respeitado e protetor. A família necessitava dele para continuar existindo. Isto era um senso comum entre todos, inclusive na criadagem.
Demorou algum tempo para que o piquete se achegasse da residência do doutor. Tempo que parecia uma eternidade para todos, menos para ele que se mantinha abstraído da realidade, como se não estivesse presente naquele local. Antes ele havia recomendado a todos que guardassem suas armas, o que fez também. Ele não desejava mostrar qualquer tipo de hostilidade. De quando em vez cofiava o bigode e suspirava levemente.
Para adentrar à fortaleza era necessário transpor uma porteira edificada no aramado que separava a residência da estrada geral do Passo do Marinheiro.
Assim que o piquete revolucionário se postou na frente da fortaleza, o estranho homem se deslocou vagarosa e tranquilamente até a porteira, abrindo-a e, de imediato, pegando no tiro do buçal do cavaleiro ponteiro da pequena tropa, quando este já se preparava para matá-lo apontando-lhe a arma para atirar na sua cabeça. Foi um instante de grande terror para todos os familiares e criados que assistiam a cena.
Não mais do que de repente ouviu-se um grito vindo da retaguarda do piquete revolucionário, pedindo que nada fosse feito contra o doutor calabrês, porque o comandante havia sido alvo de um mal súbito e necessitava de urgentes cuidados médicos.
A parada estava ganha! Não era dessa vez que matariam o carcamano!
De imediato ele providenciou atendimento ao comandante do piquete que vinha para lhe matar. Em poucos minutos o homem já estava reanimado e “fora de perigo”, posto que o perigo em si não fosse senão uma artimanha do médico ocultista para salvar sua vida, a de sua família e a dos criados, já que em casos assim comum era que todos fossem sacrificados.
Assim que o homem foi dado como curado, o intrigante doutor determinou aos seus criados mais ágeis que matassem um novilho gordo para festejar a saúde do comandante, no que foi atendido.
A festa se prorrogou até altas horas da noite. O piquete acabou pernoitando na fortaleza, em seus galpões e demais benfeitorias. O doutor e o comandante conversaram até a madrugada e matearam pela manhã, de maneira amistosa. O comandante, ao retirar o piquete da fortaleza, fez honras militares ao velho carcamano, perfilando a tropa e ensarilhando armas, acompanhando o doutor na revista à tropa composta de trinta e seis homens cuja coragem se denotava na expressão fisionômica de cada um.
Na poeira que deixavam seus cavalos ficou mais um segredo nunca revelado pelo doutor carcamano, mas presenciado em seus efeitos por muitos que deram testemunho da verdade.
Foi na época do Estado Novo, do ditador Getúlio Vargas, que ocorreu o inevitável, isto diante da forma asquerosa como o governo era exercido, com um bando de apaniguados políticos do regime imposto e com uma pífia oposição que pouco ou nada representava forte ao grande aparato do Estado.
Naquele tempo o médico calabrês atendia também no interior de Encruzilhada do Sul quando conheceu uma moça e com ela teve algumas intimidades decorrentes de consenso romântico entre ambos.
Disso surgiu um inquérito policial e o conseqüente processo criminal, totalmente viciado, já que Getúlio havia criado nas cidades a Chefia de Polícia, cargo político que era comandado no País por um nazi-fascista de primeira grandeza.
Nada ocorria nas cidades sem a chancela do Chefe de Polícia. Tudo era orientado pelo temido DIP – Departamento de Imprensa e Propaganda que também supervisionava e espionava o regime de dentro para fora prestando contas diretamente ao ditador.
Foi nessa situação política que o doutor calabrês respondeu o inquérito e o processo criminal por sedução, vindo, por óbvio, a ser condenado à prisão no regime fechado.
Passado algum tempo os seus bens foram confiscados, sua família desmantelada, a fortaleza permaneceu somente naquela parte de pedra, o restante foi saqueado e colocado em terra. Das benfeitorias que complementavam e adornavam a fortaleza nada sobrou.
Sua companheira se viu largada à miséria, tendo sido compelida a dar dois de seus filhos para outras pessoas criarem, já que não lhe restassem meios para sobreviver dignamente, isto depois de ter experimentado o conforto e a proteção de um homem cujo passado não lhe era conhecido, mas que o amava do jeito que somente ele sabia amar.
Então, quando se encaminhava para a sua liberdade condicional, o doutor calabrês foi encontrado morto dentro da cadeia, a morte ocorrera sob tortura, seu saco escrotal se estendia até os joelhos, o quadro era aterrador.
A autoridade mandou chamar um amigo seu do interior de Canguçu, homem de idoneidade imaculada, para diligenciar no reconhecimento do corpo e tomar as demais medidas para o sepultamento. Esse homem era Ignácio Rosa da Costa, meu bisavô materno.
Ignácio se deslocou para Encruzilhada do Sul, reconheceu o corpo e fez somente aquilo que a Chefia de Polícia permitiu. Não lhe foi facultado acompanhar o sepultamento razão pela qual nunca se soube onde foi sepultado o carcamano doutor, acreditando-se que o ato tenha ocorrido na condição de indigente no cemitério da vizinha cidade, sob a supervisão da Polícia Política.
A família nunca pode lhe render homenagem alguma, haja vista a completa ignorância sobre onde foram guardados seus restos mortais.
O filho mais moço do médico carcamano veio a contrair núpcias com a neta de seu amigo Ignácio, o que viabilizou que hoje, como filho deste casal, eu possa escrever esta história.
Esse homem de riso pouco fácil, dotado de encantamentos vários, de passado incógnito e de morte estúpida e não explicada, único a deixar uma descendência de carcamanos no terceiro distrito de Canguçu era o Dr. Antonio Felipe Gallo, meu avô.