(foto de Diogo Cabrita)

Lembranças de Um Tempo Que Eu Odiei.
 
  
   Eu hoje me sinto velho. Não no sentido físico, longe disso, mas no sentido mental. Não estou dizendo que estou preocupado com doenças da idade, ou com a aposentadoria que não sai. Não estou falando de preços abusivos de remédios e nem de dores nos ossos. Sinto-me velho, mas no sentido abstrato da palavra. Sinto-me como se já tivesse vivido um monte de coisas em apenas 24 anos de vida. É assim que me sinto.

     Estudei metade da minha vida, (e ainda estudo) no bairro da Tijuca, zona norte do Rio de Janeiro. Foi lá que dei meu primeiro beijo, que fui assaltado pela primeira vez. Foi lá que fui ao cinema com meus amigos pela primeira vez. Fui ver Armageddon, aquele filme com o Bruce Willis, em que a Nasa manda uma equipe... Ah dane-se! A Tijuca, mesmo que com quatro assaltos contra mim nas costas, é um bairro que me traz nostalgia.
     A primeira vez que fui assaltado foi uma situação ridícula. Fui assaltado com um dedo. Calma, não sou tão retardado a ponto de um cidadão me aparecer com seus dedos indicadores e polegares imitando uma arma, e eu lhe entregar tudo. Eu tinha apenas doze anos, e eram sete da noite. Estava escuro, e eu estava acompanhado. Aliás, sou totalmente contra essa lenda de que para não sermos assaltados, basta andarmos em grupo. Na verdade, das quatro vezes em que fui roubado, em todas estava acompanhado de pelo menos mais dois, e em todas as pessoas me abandonaram. O cara de repente apareceu com algo debaixo da blusa, me abraçou e levou para o meio-fio. Eu gelei. É uma sensação horrível.
     -Passa o relógio, ou te empurro nos carros!- disse ele se referindo ao meu relógio de camelô da Nike.
     Eu com muito medo e preocupado com os carros que passavam em alta velocidade, fui tirando o relógio devagar e entreguei ao safado. Feito isso ele se afastou, porém antes, pediu que eu corresse. Eu não consegui. Sinceramente meu primeiro assalto fora muito traumatizante. Eu estava em choque. Fiquei ali estatelado e comecei a andar, não conseguia correr. Quando me virei para trás, o ladrão estava já na outra esquina, correndo como um condenado.
     No dia seguinte, eu era o herói da escola. Todo mundo queria me ouvir, todo mundo queria saber. Mas ninguém nunca soube de fato como aconteceu. Ninguém jamais soube que eu, na verdade, fui assaltado com um dedo!
     Não é que sinta saudades desse assalto. Até porque o que mais odeio é ser assaltado. Pois das quatro vezes que fui assaltado, três delas foram das maneiras mais ridículas possíveis, e que não estou com nenhum pingo de vontade de contar. Aliás, esse assalto até me lembrou da história da Chapeuzinho Vermelho, pois nesse dia resolvi cortar caminho justamente pelo lugar que meu pai vivia dizendo para não ir. Resultado... Perdi meu relógio falsificado e fiquei com traumas de dedinhos.
     Sinto falta desse lance de novidade. De tudo que ocorria na escola já virava história. Lembro das confusões que nos envolvemos quando começou a máfia das revistas pornôs. Ou de como me senti orgulhoso quando fomos campeões do campeonato de futebol com um gol meu. Saudade do evento em que me envolvi por causa de uma música que fiz cuja primeira estrofe começava com os versos: “Ah,meu coraçãozinho!Tá sofrendo tanto com a falta de carinho...”. É disso que sinto falta. Da inocência. De como o sexo era visto por nós como algo mágico, esperado. Hoje, com a ascensão da internet, filmes pornôs deixaram de ser novidades. Revistas então, que já brigamos pela posse, essas nem sequer mexem mais com nossos imaginários.
     Sinto falta da leve responsabilidade que éramos envolvidos. Nossa preocupação era só estudar, o desespero para entregar trabalhos nos prazos estipulados pelos professores e o desespero para apresentar trabalhos na frente de toda a turma. Até hoje odeio ter que segurar cartolinas. O desespero de esquecer um inofensivo Liquid Paper e não poder pedir emprestado aos colegas. A ansiedade de tirar a maior nota da turma e ser elogiado na frente de todo mundo pelo professor. Eu adorava aquele clima.
     Adorava também a época de Copa do Mundo. Todo mundo pintado, a escola toda em festa. Saindo cedo, torcendo. As aulas de educação física eram ainda mais aguardadas. Sem contar que era o momento para aparecermos para as garotas. Sempre me dei bem com elas. Sempre fiz muitos amigos. E olha que poderia ser considerado um CDF.
     Tenho saudades desse tempo que eu odiei e que agora dói saber que não volta mais. O estranho é que também sinto falta justamente de pessoas que na época eu desejei até a morte. Por exemplo, um professor de história que eu tive, e que foi uma das figuras que mais me surpreendeu em todo ginásio (hoje não sei como chamam o ginásio). Com ele, a história se tornou uma das matérias mais assustadoras de todos os tempos até a sexta série. Não me lembro seu nome, mas lembro que antes mesmo de ter aula com ele, eu já o temia. E muito.
     Sabe nos filmes americanos que se passam e universidades, que tem aquele aluno valentão que quando passa no corredor, abre-se um verdadeiro clarão entre os demais? Pois é, esse professor era assim. Todos os temiam. Alunos atuais, ex-alunos e até alunos que nunca tiveram aula com ele. Ele simplesmente causava pavor.
     Usava uma barba ruiva, era gordinho e andava confiante. Óculos redondos e sobrancelhas envergadas que lhe faziam ter um olhar maléfico. Constantemente ouvíamos os gritos dele com os alunos. Constantemente ele aparecia na nossa sala por conta da bagunça quando o professor saía, e levava alguns de nós para ficar de castigo na sala em que ele estava dando aula. E o castigo variava entre ficar de pé no fundão, ou copiar um capítulo inteiro do livro de história. Esse era o tratamento dele. Achávamos que era a própria reencarnação de Hitler após aprendermos um pouco mais sobre o nazismo.
     Foi então que um dia o professor de física faltou, e ficamos com um tempo vago. Acho que era uma quinta-feira. Um dia tranquilo geralmente... Foi então que eu inocentemente, no meio da bagunça que os alunos da turma faziam, me levantei para mudar de cadeira. Nesse instante, ele, o Temível professor, entrou na sala. Seus olhos odientos se cruzaram com os meus assustados. Vi seu dedo indicador apontando na minha direção...
     -Você, russo! Desce!- disse se referindo à minha cor branca quase transparente de pele.
     Foram os cinqüenta minutos mais aterrorizantes da minha vida. Mais até que o assalto dedilhado. Eu copiando um capítulo imenso e ele me observando por cima dos óculos. Era horrível. Foi nessa época que me intestino ficou irritado. Foi nessa época que tive meu primeiro surto de ansiedade. E tudo ficou mais tranquilo com o simples toque do sinal. Fui literalmente salvo pelo gongo e disposto a nunca mais cruzar meu caminho com o do tirano.
     Mas a grade curricular me reservaria surpresa, e quando vi na lista de professores do ano seguinte quem seria meu mestre de história. Eu vi que o ano de 1999 seria o mais longo dos anos.
     Foi aí que me enganei. O professor de história no primeiro dia entrou sorrindo, e por incrível que pareça lembrou de mim. Ele se mostrou um cara que conseguia ser sério, e mesmo assim ser brincalhão. Fazia a gente ler em voz alta os capítulos estudados, nos fazia ler em voz alta nossas respostas aos questionários, e ainda nos dava notas ali, na lata. Sem contar que via nossos cadernos todas as últimas aulas do mês. De um modo ou outro ele nos deixou mais responsáveis.
     O único problema dele era seu humor bipolar. Às vezes ele chegava estressado e não queria brincadeiras. Nesses dias a turma ficava num silêncio mórbido. Só falávamos quando perguntados.
     Foi então que um dia, ele se atrasou. A turma ficou fazendo aquela bagunça. Pessoas cantando, pessoas em cima da mesa, passeando pelos corredores. Aquela animação de alunos que achavam que iam sair duas horas mais cedo e iria para a pracinha jogar futebol, mesmo que com latinha de refrigerante amassada com os próprios pés! Mas estávamos enganados, pois o cara chegou e pegou todo mundo de pé. Lembro até hoje dos gritos. Ele batia na mesa a cada vogal que pronunciava! Teve aluna mais sensível que até chorou. E nesse dia, ele disse: Semana que vem prova com todos os capítulos estudados até agora!Sem consulta!
     Gelamos! Eram doze capítulos! Estávamos no final do semestre, o fim de ano estava chegando! Seria impossível! Estávamos ferrados!
     Na semana seguinte, todos chegaram calados na sala de aula. Ninguém comentara a semana inteira. Parecia que tudo apenas havia sido um sonho coletivo, pois ninguém sequer questionava o quanto se poderia acertar na prova surpresa.
     E ele entrou na sala. Com aquele ar arrogante, segurando um envelope de papel pardo, exatamente como os que nos amedrontava nas semanas de provas. Ali dentro estaria nossa passagem para a recuperação final. O adiamento de nossas férias.
     Sentou-se na sua cadeira. Respirou fundo. E começou a falar coisas sobre a escola, a importância dela. Sobre respeitar os professores, os colegas. Sobre aproveitar os tempos na escola para aprender mais, para visitar a biblioteca. Falou sobre um monte de coisas que para nós era uma chatice tremenda! Foi então que ao final ele disse:
     -Vocês deviam respeitar o professor mesmo que ele não esteja na sala de aula. Eu sou a autoridade aqui. Me atrasei pois minha mulher deu a luz hoje ao meu filho. Meu primeiro filho, Lucas!- ele se levantou segurando o papel pardo e foi colocando um bloco de folhas sobre nossas mesas, sendo que a primeira folha era em branco. – Não sou à favor de usar o estudo como castigo, mas vocês pediram. Custava ficarem quietos? Ficarem sentados conversando feito gente civilizada? Nem parecem meus alunos, porra! – eu nunca havia escutado um professor falar palavrão antes, foi um baque. – Eu como professor tenho que manter a ordem. Eu adoro dar aulas e vocês são uma turma esforçada!
     O professor olhou para mim e sorriu. Eu fui o último a receber o bloco de provas. Feito isso ele pegou o giz e escreveu a data no quadro. Depois se sentou na cadeira e cruzou os braços.
     -É duro ser professor. Mas tem seu lado bom. Quando tinha a idade de vocês eu queria ser professor para mandar e desmandar dentro da sala de aula. Quando fiz faculdade, queria se professor para ensinar aos alunos, para ser visto como um herói! Hoje tenho quase quarenta... E sabem por que continuo sendo professor?
     Era uma pergunta, só que nós ficamos calados. Estávamos com muito medo da possível bronca que poderia estar por vir.
     -Eu fiz uma pergunta! Estão surdos? Sabem por que continuo sendo professor?-insistiu aos berros.
     -Não!-respondemos frios e num susto enorme.
     -Por que hoje sou visto como herói e como vilão! A matéria que leciono é uma matéria que é odiada por todos, e se eu não fosse assim, duvido que vocês levem a história a sério. E querendo ou não, eu mando e desmando em vocês!- aqui ele deu um sorrisinho e descruzou os braços. – Exatamente por isso eu faço o que quiser na sala de aula. E por exemplo, posso não dar prova nenhuma hoje... Que é justamente o que farei!
     Ficamos todos pasmos. Como assim? O Hitler da escola estava brincando? Abrimos o caderno de provas e não havia nada lá! Nenhuma pergunta! Nenhuma opção! Nem sequer um cabeçalho para nome e data! Havíamos caído numa pegadinha! E justamente de quem!
     Eu só sei que todo mundo caiu na gargalhada. Alguns choraram de nervoso e alívio ao mesmo tempo. Outros até se abraçaram. E a partir dali, as aulas dele se tornaram as mais queridas da sexta série.
     É disso que sinto saudades. Da união da turma. A faculdade foi uma grande decepção para mim. Primeiro porque não é como nos filmes americanos, aonde há sexo e seios por todos os cantos. E segundo, pois não conseguimos fazer amizades como naquela época. As turmas mudam, as responsabilidades são maiores. Na faculdade todos estão competindo entre si. Sinto falta do tempo que eu odiei. Do tempo que estudava por castigo, mas que hoje vejo a diferença que esses castigos me fizeram. É estranho lembrar tanto dessa época. Quando passeio pela Tijuca, eu consigo me ver saindo da escola e indo em grupo para o ponto de ônibus. Saudades.
     Hoje eu entendo porque o Peter Pan nunca quis crescer. Pois a infância é a época em que vivemos intensamente. Que nos descobrimos. A infância é a época que marca pra sempre.
 

 
FIM

Todos nós temos boas lembranças da época de escola. O texto acima mostrou algumas lembranças minhas e de amigos meus.
Espero que tenham gostado e compartilhado dessa volta aos bons tempos.
Dê sua opinião sobre ele.
Muito obrigado!
Rafael Velloso

 


 
Fael Velloso
Enviado por Fael Velloso em 05/08/2011
Reeditado em 07/08/2011
Código do texto: T3140303
Classificação de conteúdo: seguro
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