Recortes

Chove lá fora, tenho medo da chuva, os relâmpagos iluminando a janela me causam arrepios, penso que a qualquer momento irão me atingir, vou cair dura, estorricada no chão, que engraçado, eu nunca vi ninguém morrer por raio, mas tenho a nitida impressão que é assim que acontece,a língua fica preta, enrolada,os olhos esbugalhados...a pele enegrecida,abro os olhos,me vejo abaixada em um canto,me vejo em cena,sentada na cama,fitando o canto do quarto,ali vejo um homem de chapéu,alto, forte,braços longos,ele não fala nada,apenas me olha,não tenho medo dele, mas não me acostumo com essa visão, penso sempre que ele está invadindo minha privacidade,mas nada posso fazer, ele é fruto da minha imaginação, porém, não sei como afastá-lo,viro o rosto para o outro lado, de novo o relâmpago,meu Deus, não vai parar de chover? Penso eu,de repente me vejo criança, olhando a janela,tentando pegar a chuva,meu pai vem e me puxa para o sofá,tento subir no encosto, só sinto a palmada na perna,ele não quer que eu me molhe,fecha a janela, puxa a cortina, me manda para o quarto dormir,não quero ir, porém a voz de comando ecoa forte em meu cérebro,quando dou por mim , já estou lá no quarto sozinha,pego uma boneca e puxo-lhe os cabelos,pois ela não quer parar sentada,de repente do nada, aparece o moço, agora pintado de palhaço o rosto,tenho medo, me escondo debaixo das cobertas, mas espio por uma fresta para ver onde ele está, não o encontro,percebo que minha respiração está ofegante, estou suada,começo a esquentar, o medo faz coisas com a cabeça da gente,que ninguém sabe explicar...o tempo não passa, a chuva começa mais forte, o vento na janela a uivar,o choro, o lamento,nada parece ajudar,quero gritar não consigo, tem uma mão a minha garganta apertar, essa garra enorme, de onde virá?Fico zonza, me sinto sozinha, não sei mais a quem chamar, ninguém me escuta, estou tão sozinha,não vai mais passar? Começo a cantar bem baixinho, uma canção de ninar,daquelas que só a avó da gente sabia cantar, aí tudo clareia, o dia amanhece, o medo desaparece, não vou mais chorar.Embora pequena, tem dias que a vida da gente parece pesar, e nunca encontramos alguém para nos ajudar,todo mundo tem pressa, tem compromissos, não sabem parar, e perdem para sempre a inocência do nosso olhar!Agora mais velha,penso que tudo isso,são pequenos pedaços da minha infância,de coisas mal resolvidas,que me atormentam a vida, porém eu sou forte, e sei que as feridas, sempre cicatrizam,e a nossa vida precisa ser vivida.Tento não pensar em mais nada finjo não ser comigo,mas quando a chuva recomeça...