UM MENINO POBRE E O SEU TERNO SURRADO

UM MENINO POBRE E O SEU TERNO SURRADO

Eu tinha 16 anos e morava em Recife, capital pernambucana, no bairro de Casa Amarela. Era um garoto humilde mais muito querido no bairro e um dia recebi um convite para participar do baile de formatura do 2º grau colegial no Clube Português, considerado o mais badalado e conceituado do bairro, conceito que perdura até os dias de hoje. Passeio completo e vestido longo eram os trajes recomendados para poder entrar no baile e não via a hora de entrar nesta festança.

Só que, eu, menino muito pobre, filho mais velho de12 irmãos – hoje em dia, 11 ainda vivos, na minha casa, não havia água encanada, nem possuíamos eletrodomésticos, até mesmo os mais simples como ferro elétrico, liquidificador, fogão a gás, geladeira etc. Por extensão, não tínhamos muito o que vestir, nem para uma simples missa de domingo o que dirá um terno completo que era o requerimento “sine qua non” para ir ao baile. No entanto minha vontade de ir era tanta que, de qualquer maneira e custasse o que custasse, eu daria meu jeito de ir, pois sempre na vida venci obstáculos agindo assim, vendo o desafio e enfrentando-o, porém meus pais não tinham a menor condição de comprar um terno, mesmo de segunda-mão para mim, e com o que eu ganhava com as coisas que fazia desde pequeno, catando caranguejos ou aprisionando e vendendo passarinhos, na minha inocência de garoto, não dava nem para as meais.

Bem, pensei, se não tinha como, a solução possível, naquele momento e dado o meu desespero de causa, era tentar encontrar alguém conhecido disposto a me emprestar um terno e que tivesse as minhas medidas ou acima, imediatamente próxima, para não ficar ridículo demais com um terno sobrando ou apertado. Após várias idas e vindas, na casa de amigos, todos pobres como eu, e de parentes, já na derradeira tentativa, consegui arranjar com um primo afastado da minha mãe, na maior cara de pau, já que pouco nos víamos chamado Moacir e que morava na cidade vizinha de Olinda, apenas um paletó xadrez, com o caimento mais ou menos do meu corpo, mas sem a calça e muito, diria até muitíssimo, surrado, que mais parecia cobertor velho desses usados por mendigos nas ruas, tendo até um cheiro de não ser lavado a muito tempo. Para não fazer desfeita e já em desespero de causa, eu trouxe para casa e quando encontrei a minha mãe comecei a esbravejar, desenfreadamente, como se o mundo naquele momento estivesse acabando e nada mais restava para eu fazer, “Oh, vida cruel!”.

Mas, como diriam os “Cacetas” na suas organizações “Tabajara”, nem tudo estava perdido, seus problemas acabaram, a minha mãe teve uma de suas brilhantes idéias, pois para criar 12 filhos como ela criou, só sendo brilhante mesmo, de, dado as condições precárias, ou melhor, a total falta de condição de se adquirir uma roupa nova, resolver a questão da seguinte forma: Se tingiria o famigerado paletó na cor preta e uma calça, também surrada, que eu usava normalmente, no meu dia-a-dia, na mesma cor, dando aos dois um toque de conjunto, já que ambos estavam para lá de lanhados.

Aparentemente, o grande empecilho, a princípio, parecia ter sido superado, já que eu tinha agora um terno “novinho” em folha, combinando calça e paletó, e poderia ir desfrutar o baile como sempre sonhei, e ver as mais lindas garotas da cidade de Recife que sempre imaginei ter em meus braços viris de um adolescente já bem taludinho.

O próximo passo então seria operacionalizar o tingimento da beca invocada que eu tinha arrumado, com bastante antecedência, visando não correr risco, pois a festa era tão importante para mim, como é a água para os nordestinos na seca do sertão. Desta forma, quando o trabalho ficou pronto, bem passado com ferro a carvão, precisava ver a alegria que me invadia o peito e me fazia sentir um cabra importante “pra moléstia”, parecia uma roupa nova comprada sob medida numa loja de Shopping Center do sul maravilha. Eu vestia, me olhava num espelhinho, fazia pose de tudo que é jeito, e até fingia fumar um cigarro entre os dedos como se fosse um granfino.

Aos amigos eu dizia que ninguém seria mais elegante e bem arrumado que euzinho, fazendo inveja num bando deles, que iriam de terninho da missa, sem muita convicção, e eu não, bonitão com minha roupa da ‘hora’. Dizia que não ia ter para ninguém com as meninas e que cada um fosse se contentando com as que sobrassem, pois eu faria de todas minhas odaliscas, formando um harém sem fim.

Logo o grande dia chegou. Passei horas num banho de cuia e água fria, sem me importar com nada, me ensaboando com um caco de telha para tirar o cascão das peladas com os amigos no campinho poeirento de todo dia. Vesti meia, coisa raríssima, cueca samba canção e uma camisa de manga longa bem engomada pela minha mãe, tudo de cor branca, exceto a gravata, que troquei por três papa-capins, que apanhará no meu alçapão, na feira de Recife, que era estampada sobressaindo nos tons marrons e pretos, e, em seguida, coloquei o fabuloso "terno preto" preparado e turbinado para a ocasião. Antes de ir, olhei-me no espelho e me achei o cabra mais bonito de Recife, quiçá, de Pernambuco e todo o Nordeste, o máximo, nota dez em todos os quesitos.

Era um sábado, verão escaldante, mês de janeiro ‘bombando’, como dizem hoje meus filhos, estava muito quente, um calor de 40º dentro do clube que era insuportável, todos suando desesperadamente. A banda já começava a dar os primeiros acordes e, em paralelo, eu procurava observar as gatinhas para traçar as estratégias da paquera. Naquela época, como ainda é hoje em alguns lugares, os pernambucanos tinham como hábito dançar até quando o conjunto parasse de tocar, no final da festa.

Quando a orquestra de fato começou a tocar a primeira música, uma melodia suave, mas que não me recordo mais, como me sentia o “tal e coisa e coisa e tal”, chamei uma linda garota para dançar. Morena clara, cabelo comprido castanho escuro, vestido longo branco e sapato preto com salto alto. Estava tão convicto que ela não ousaria recusar o meu convite. Dançávamos o tempo todo grudados e suávamos sem parar, bem agarradinhos, com rostinhos colados, feitos nos filmes que assistia na cidade quando sobrava alguns trocados para o cinema. Ela toda perfumada, cheirosa como florada no campo. Cabelo suave, macio, também cheiroso e muito bem penteado.

A paquera estava indo de vento em popa, pois conversamos durante o arrasta-pé e sentia que ela havia gostado o suficiente para dar prosseguimento na minha empreitada, com todos os maus e bons pensamentos que me passavam pela cabeça naquela hora. Imaginava: “Eu aqui, bonito feito filho de alfaiate, dando pinta de bacana, esta menina a mais linda do baile, cheirosa e me dando bola, vou pras cabeças! Matar meus amigos e inveja e beijar muito ela, até ela perder o fôlego, e quem sabe...!”.

A música rolava e nos rodopiando juntinhos pelo salão, no melhor arrasta pé que já vi. Eu olhava os meus amigos com certo ar superior, me sentindo “o cara”, nada poderia abalar minha confiança, minha auto estima estava nas alturas, me sentia um REI a bailar pelos salões do meu castelo.

Todavia, contudo, entretanto, como pão de pobre sempre cai com a manteiga para baixo, quando eu achava que tudo iria correr as mil maravilhas, aconteceu uma verdadeira tragédia, a coisa mais absurda e desgraçenta que poderia acontecer ao REI do salão, pois no exato momento em que a orquestra parou de tocar e nos por um pequeno instante nos separamos, a menina linda e maravilhosa gritou em alto e bom som: – "Olha só o que aconteceu com meu vestido!"

Para o meu, o seu, o nosso espanto e dos súditos, digo, pessoas próximas a gente no salão, o seu vestido branco de cetim da minha princesa estava com um terno preto desenhado de ponta a ponta, com direito aos botões e tudo mais, pois, para meu azar absoluto a tinta do meu terno tingiu totalmente à frente do vestido da minha rainha.

Nunca em toda minha vida senti uma vergonha tão intensa. A coisa que eu mais queria naquele instante era sumir, ‘vazar’, ser abduzido, desintegrar e nunca mais ver meus amigos, desaparecendo para todo o sempre. Sentia uma vergonha que me fazia travar as pernas e não conseguir sair do lugar por segundos que pareciam intermináveis. Meu castelo tinha ruído como um de cartas ao sabor das brisas do mar de Recife.

Assim que a ficha caiu, que me vi naquele embaraço e as pernas “destravaram”, só tive uma reação: Bater em Retirada. E foi o que fiz na hora. Sai correndo, correndo e correndo, não olhava para trás e a sensação era que todos vinham atrás de mim para me linchar, até que cheguei a minha casa. Minha mãe pagou por todos os seus pecados naquele dia, se é que ela tinha, aturando o que eu com o meu mau humor, falei para ela, até mesmo, falar mal, dentro do que me era permitido, eu falei mal, só que o chinelo dela cantou e comeu no meu couro de menino atrevido sem piedade.

Por fim, e perdi o baile, a menina e levei uma coça ainda da minha mãe, bem merecida.

Que dia complicado....

Arqueirorj
Enviado por Arqueirorj em 01/08/2011
Código do texto: T3131906
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