UM VALADÃO NO MUTUM
(in memória do meu bisavô, o menino Valadão da história e com a benção de G. Rosa.)
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A vida no Mutun é tão dura como o chão que a gente pisa. É da cor da mata, todo dia tem um verde diferente que brota no meio das jangadeiras. Quando os ipês estão desfolhados todo mundo respira mais devagar pra fingir melhor a vida que leva, toda gente sabe que o colorido que vem nas flores não vai mudar em nada a tristeza da fome.
Dona Idalina bem que planta galinhas no quintal, colhe os ovos e troca por feijão... Mas a terra no Mutun é mesmo dura, só mandioca e milho.
Dona Idalina gosta do Valadão menino que nasceu da barriga dela. Ela fala dele que é esperança de outubro. O menino valente infringiu a lei de Deus e se fez semente no ventre seco dela que só viu homem uma vez na vida, só esse que é o pai, nunca mais deitou com outro nem com ele que tem é ódio do Mutun.
O Valadão, pai do menino, tem ódio da mata, ódio por tudo que planta, ódio por Idalina e ódio pelo menino. Esse homem que ainda está entre nós é violento, bate em tudo que não ama. Bate no menino e diz, Vira homem. É homem que não dá conta de ser mais rude, mais seco, mais bravo e mais homem, de tanto que tem ódio nas veias.
Já o menino pensa, pensa que um dia vai aprender leitura na escola da cidade. Pensa tão alto que dá pra escutar, Vou ter professora bonita que até veste calças. E dona Idalina, Um dia vai ser artista esse meu filho e a professora vai dizer que os desenhos dele são bonitos, que o Mutun é tão bonito!
É por isso que o menino Valadão vê o Mutum mais verde depois de cada chuva, ainda que seja a mesma senda dura como o chão que a gente pisa. Porque ele sabe, na escola vai encontrar as palavras e as palavras são outras cores que vão garantir que o Mutun fique ainda mais bonito.
Muita valentia e coragem o menino tem pra esperar a hora certa.
Aquele homem que passa por aqui de vez em quando logo volta e, mais homem então, o Valadão menino vai embora. Vai deixar o mutum no lombo duma mula, vai deixar a mãe que o ama em silêncio de pedra e o valentão que fez da carne dela o verbo da sua.
Quando o homem que veste roupas da cidade passar por aqui leva no lombo do cavalo esse outro Miguilin que espera nesse outro Mutun que são tantos.
No lombo assento caberá dois, levará a memória do nome para escrever essa história cheia de medo desbravado, de mulheres tristes bonitas e de homens bravos nascidos nas pedreiras do cerrado.
E quando um dia, já tão velho pegarem no retrato seu, toda gente vai dizer da sua história: era uma vez um menino valente chamado Valadão...
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Baltazar Gonçalves