Saci e outras assombrações

A meninada já havia se acomodado na beirada da casa. Faltava apenas dona Alzira tirar da boca o fumo que mascava e dar sua cuspida de cuspe elástico, para começar sua narrativa. Ah! faltava também ela dar a risada das boas. Ela só começava a contar seus causos após dar a risada. He...he... he...he...

Nisso, começou uma discussão.

_ Hoje eu quero um causo acontecido, falou uma das crianças.

_ Nem precisa ser acontecido. Quero causo de assombração. Eu quero um causo de saci.

_ Mas, Saci é assombração? Gosto de causo de alma penada.

_ Xô! Meninos_ disse dona Alzira colhendo as roupas que estavam estendidas no chão para quarar_ ué! Arengando por causa dos causos! Olha, olha que não conto nada hoje.

Ficar sem os causos do dia? Vê lá! _ foi o que todos imaginaram.

_ Saci é assombração?_ perguntou um dos meus irmãos.

_Uai. Né, não. No livro de histórias ele é um negrinho perneta, que aparece pulando na perna que tem, de capuz vermelho na cabeça e um cachimbo no canto da boca.

_He...he... nem vou precisar contar hoje. Vocês é que vão contar.

_ Precisa, precisa contar. Mas, conta do saci! Ele já apareceu pra senhora?

_ He.. he... pra mim, não. Ou.... pode ser. Lá pras bandas da Onça ele aparecia, ainda mais quando era no tempo da escravidão. Já num contei pra vocês que lá, no tempo do ouro, havia muitos escravos? No meu tempo aparecia mais pouco. Bom, mas tem gente que conheço que já viu saci. Eu nunca vi. He... he... Mas, já suspeitei de algum. Uma vez, pus o feijão no fogo e quando abria a fervura, escutei um assobio fino, estridente. Fui até a janela pra ver o que podia ser. Quando cheguei de volta na cozinha, o fogo estava apagado, num tinha mais nem brasa. Passei a mão no rosário, que dizem que espanta o moleque e gritei “Saci”, que ele num gosta de escutar seu nome. Então, acendi o fogo pra cozer o feijão que o marido, uqe ainda não havia morrido, Deus o tenha, ia chegar da roça, varado de fome. Fiquei matutando lá comigo. Aquilo só podia ser mesmo coisa do diabinho. Num tinha vento nenhum naquela tarde e nem meus meninos estavam por perto pra apagar o fogo daquele jeito........

_ Mas.... Isso é causo de assombração?

_ He... he... Assombração, o quê que é mesmo?

_ Alma penada, coisa doutro mundo, aparição, fantasma! _ disse um.

_ Barulhos, vozes assim como Mariiiiiiiiia. Mariiiiiiiiiia! _ falou outro.

_Ruído de correntes sendo arrastadas. Gemidos: aaaiiiiii, socooooooorro. Velas que acendem e apagam sem ninguém pôr fogo. Claridade que chega de repente no quarto.

_E o Saci? Será que não é uma assombração?

_Assombração assim, mansinho?

_ He...he... Sei lá se o Saci é manso. Menino arteiro é menino bonzinho? Num conto nada. Lembrei de uma outra aparição de Saci. Meu cunhado, irmão do falecido marido, comprou um potrinho, bonito que só vendo. Ele estava ainda meio brabo, mas carecia de uns cuidados, que logo ele ficaria bom para os serviços da roça. Numa noite, noite sem vento, sem tempestade, de muita estrela no céu, de lua nova, que num deixava os pastos muito alumiados, ele escutou uns ruídos de leve, uns assobios. Era coisa vinda da banda de fora da casa. Ele debruçou na janela, que estava até aberta por causa do calorão que fazia e correu os olhos pelo terreiro. Viu que estava tudo quieto. As galinhas no poleiro, o cachorro dormindo na beirada da cerca e o potrinho no lugar dele. O cunhado, então, foi dormir. Achou que tinha sentido um cheiro meio esquisito, que não soube explicar de quê, que podia até ser de enxofre. Deixou por isso mesmo. Quando raiou o sol, o galo já tinha cantado, as galinhas cacarejado, o cachorro já tinha latido, nisso, o cunhado destampou a ouvir uns relinchos do potrinho, parecendo que vinha de muito longe do terreiro. Ele abriu a porta e... he... he... O potro estava lá da banda de lá da cerca. E tudo fechado, nem um sinal de passagem na cerca pra ele sair. Ele caminhou até onde estava o potrinho e levou um baita dum susto. O coitado estava com a crina, com o rabo, tudo trançado, que nem trança de cabelo de mulher. Ele levou uma arrepiada no corpo inteiro. Só podia ser coisa do Saci! He... he... he... e vocês acham que o Saci é mansinho!

A meninada ficou calada por um instante. No silêncio, fiquei pensando na indagação de um dos meus irmãos. Saci é assombração? Aparição... Assombração... Alma penada... Coisa do além. Num acho que Saci seja coisa do além........ Mas, acaba que eu gostava de ouvir causos de Saci também. De mula-sem-cabeça, de lobisomem, do boitatá, de mãe d’água... De tudo quanto é aparição.

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Terezinha Pereira
Enviado por Terezinha Pereira em 07/12/2006
Código do texto: T311999