Seria um caso de maldição?
Seria um caso de maldição?
Maju Guerra
Marilene é um caso à parte, nasceu com um poder misterioso e fatal. Na família por vezes comentavam, em voz baixa, sobre o sinistro dom de uma bisavó, fruto de uma esconjuração. Pois Marilene herdara a atávica maldição. Ela não fazia mal a nenhum ser vivente, a não ser aos seres humanos mordidos por algum tipo de cobra venenosa. Se olhasse para a criatura, a morte chegava de imediato, não havia salvação possível. Há quem diga que poderia ser pior caso o olhar se aplicasse a mordidas de qualquer animal peçonhento.
Nascida e criada em uma cidade do interior, só descobriram o malefício do seu olhar após algumas mortes. Na primeira vez, seu Aparício da padaria foi mordido por uma jararaca-preta. Ao ser levado para o posto médico, cruzou com Marilene a passear pela calçada de mãos dadas com a mãe, dona Solange. Do alto dos seus quatro anos de idade, passou os olhos pelo ferido. Foi o bastante para que ele falecesse em seguida, nem chegou a ser socorrido. Ninguém desconfiou de nada, não obstante dona Solange houvesse pressentido algo temível no ar, chegou a se arrepiar da cabeça aos pés.
De outra vez, o filho de dona Cidinha, mordido por uma jararaca-pintada, foi levado às pressas para o médico. No caminho, passou pela casa da Marilene que brincava no portão. A menina olhou surpresa para o rapaz, ele logo estrebuchou e morreu perto do muro da casa. D. Solange, espectadora de todo o ocorrido, ficou mais apreensiva. Seria possível que a filha possuísse o mesmo tipo de olhar mortal da bisavó? Mais uma vez, afastou o pensamento ruim. Apenas Celina, a irmã de sua confiança, compartilhou com ela a tenebrosa dúvida. Celina comentou já haver escutado algumas conversas, à boca miúda, sobre o assunto. Ambas decidiram permanecer caladas diante do fato. Rezavam para que estivessem erradas, mas certamente ficariam atentas. A verdade precisava vir à tona.
Passado um tempo, dona Odete da farmácia, ao varrer as folhas secas do quintal, acabou mordida por uma coral. Ao ser carregada para o atendimento médico, encontrou a menina, junto com a mãe e a tia, na pracinha da cidade. Marilene, curiosa, aproximou-se, olhou para ela, perguntou o que havia acontecido. Dona Odete resfolegou e morreu em um piscar de olhos. Daquele momento em diante, assombradas, a mãe e a tia da menina não mais duvidaram do poder do seu olhar nefasto.
Ao chegar a casa, dona Solange, aos prantos, chamou o marido. Necessitava com urgência lhe contar o fatídico segredo. Ele não acreditou, impossível acreditar em tal barbaridade. Sua filha não poderia ter herdado da bisavó o legado maldito, eles não mereciam a provação. Dona Solange, em estado de choque, afirmou que não mais iria testar se Marilene possuía ou não o horrível dom, a certeza já se confirmara, que o Senhor a perdoasse. Evitaria qualquer tipo de contato da filha com pessoas atacadas por cobra peçonhenta.
O marido a desafiou. Bateu pé e jurou provar o quanto estava equivocada. Levaria Marilene para olhar a próxima pessoa mordida por uma cobra venenosa, embora não desejasse mal a ninguém. Precisava era livrar a criança de tamanha calúnia. Dona Solange implorou para que ele não agisse daquela maneira, mais alguém morreria com toda a certeza. Ele não lhe deu ouvidos.
Após um longo período de tempo, a menina com dez anos feitos, foram todos passar uns dias no sítio da família. No fim de semana, um morador próximo foi mordido por uma cascavel. O pai, lembrando-se do juramento, levou Marilene para perto do homem desconsiderando o imenso desespero da mãe. Lá chegando, bastou a garota olhar para a criatura. O homem revirou os olhos e caiu morto bem na frente do pai. Ele, totalmente aturdido, precisou encarar a cruel verdade. Voltou para casa em um estado deplorável, tremia de dar pena. Com a voz trêmula, pediu desculpas à mulher. O que fizera deveria permanecer em segredo, suplicou-lhe. Carregaria a culpa por toda a eternidade, seria o seu castigo. E agora, o que fariam? A desgraça os atingira em cheio.
Depois desse acontecimento, tornou-se insustentável esconder o infortúnio de Marilene. A notícia, aos poucos, foi-se espalhando por toda a cidade e proximidades. Marilene viu-se discriminada pelos habitantes locais. Ela sofria demais, não saía de casa, tornou-se uma pessoa acabrunhada. Não conseguia compreender a razão de ter nascido daquele jeito, não fazia sentido uma pessoa morrer só por causa do seu olhar. Ela passou a definhar de melancolia, ficou pele e osso. A família decidiu, então, mandá-la para a casa dos avós na capital, ela não mais pertencia ao seu lugar de nascença. A menina se sentiu rediviva, era a solução. Sua vida seria outra, bem melhor com certeza, apesar da saudade. Ela aceitava seu destino com plena resignação.
O povo da cidade suspirou aliviado quando Marilene se mudou para a cidade grande. A possibilidade de alguém ser mordido por cobra peçonhenta na capital era praticamente inexistente. A cidade grande, como todo mundo sabe, oferece outros e outros perigos.
Maria Julia Guerra.
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