A ONÇA DEVORADORA

Eram seis horas da manhã de uma quarta-feira, mês de julho, se não me engano. O ano era 1966. Após o banho fui para a sala de café do hotel cujo nome não conto. Eu cursava o terceiro ano da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Espírito Santo, que funcionava na Cidade Alta, próxima do Palácio Anchieta. Naquele dia eu faria a última prova do primeiro semestre. Como o café do hotel era muito pobre, constituído, apenas, de um pão francês com manteiga, café e leite, um problema me assaltava: não tinha dinheiro para almoçar – ou jantar. Felizmente a passagem de volta para casa, que seria no dia seguinte, já estava comprada.

Terminadas as provas, locomovi-me para a Praça Oito, local onde, por certo, seria mais fácil encontrar um amigo. Aproximava-se das catorze horas e eu ainda não tinha posto os olhos num conhecido, num amigo, que pudesse me socorrer economicamente.

O meu avô, muitos anos atrás, numa conversa sob a luz de uma lamparina, no alto de sua experiência me disse, filosofando, que uma pessoa nunca deveria morar num lugar tão pequeno que só existissem uma padaria, uma farmácia, um armazém e uma prostituta. Todavia, era recomendável que se comprasse sempre na mesma padaria, na mesma farmácia, no mesmo armazém e et coetera. Fiel a esse princípio, eu era freguês assíduo do Restaurante Marrocos, aquele que era situado atrás da Praça Oito, na Rua Duque de Caxias, onde eu tinha crédito. Cariacica, um dos garçons, pessoa amável e solidária, sempre socorria financeiramente os seus amigos e eu tinha o privilégio de ser um deles. Mas, como às vezes a sorte nos abandona por momentos, naquele dia Cariacica não trabalhara.

Quando já estava conformado com a má sorte e me preparava para voltar ao hotel, um braço forte apóia-se no meu ombro direito. Volto-me, rápido, e dou de cara com um amigo que morava em minha cidade. Fiquei num misto de alegria e decepção. De alegria por vê-lo; de decepção, porque o meu amigo, um Oficial do Registro Imobiliário da minha cidade, era tido e havido como pão-duro. Tinha muitos apelidos, tais como “~Papagaio no Arama, “Mão de Vaca”, Munheca de Samambaia”, “Unha de Fome”, “Muquirana”, “Mão de Finado” e outros que não me lembro. Diziam, ainda, que ele não servira às Forças Armadas porque não abriria a mão para bater continência; que não jogava peteca, enfim, que beliscava a mão todas as vezes que abria o cofre.

Papo vai, papo vem, em dado momento o meu amigo - que lhe vou chamar de Agepê – bateu as duas mãos na barriga e exclamou: o estômago ronca, estou com fome! E Emendou: vamos almoçar ?

Hesitei na resposta. Afinal, como dito, Agepê tinha jararaca no bolso e eu estava a grito e não sabia se se tratava de convite ou insinuação, como se dizia na época. Era sempre prudente, dependendo da pessoa, indagar se era convite ou insinuação, uma forma humorada de precaução. Então arrisquei:

-- Só se você pagar a conta.

A expressão no rosto do Agepê me deu a impressão do grau de arrependimento de ter-se encontrado comigo, naquele momento. Mas...

-- Tudo bem. Eu pago.

Ao dizer “eu pago”, esboçou um sorriso, que me deixou angustiado. Lembrei-me de uma frase cujo autor não me ocorre neste momento: “O sorriso, na criança e no adulto, exterioriza uma gama numerosa de sentimentos”. Se se pode dar cor a um sorriso, eu diria que o dele era amarelo, chocho, sem convicção. Mas...

Fomos para o Restaurante Marrocos. O prato do dia era feijoada, servida em panelinhas de barro. Geralmente o prato do dia era barato.

Percebi que o meu amigo Agepê, ao consultar o cardápio o fazia olhando para a coluna dos preços e não para aquela em que estavam relacionados os nomes dos pratos. Pensei, se a fama é verdadeira, vai pedir o prato mais barato. Bingo, não deu outra.

Almoço sempre ao meio dia –disse ele. Como já são quinze horas, perdi o apetite e vou, portanto, comer uma coisinha qualquer.

Procedi da mesma forma, corri o dedo – o fura bolo – na coluna dos preços e, em dado momento, parei. Por azar, do Agepê, é claro (será que foi azar? ) era o prato mais caro: lagosta à parisiense. Fiz o pedido. Quando levantei a cabeça, deparei-me com um triste quadro: Agepê exibia um olhar mortiço, sem brilho, cadavérico. O rosto macilento porejava em borbotões gotículas de suor. O susto foi grande, mas se restabeleceu, com ajuda.

Quando começávamos almoçar, entrou no Restaurante, na parte mais baixa, onde serviam chope e cafezinho, um conhecido do Agepê, que pediu um chope.

-- Messias, seu danado, há quanto tempo não o vejo ? Suba, vamos almoçar – gritou Agepê, já restabelecido, certo de que desgraça pouca é bobagem.

-- Estou feliz em vê-lo – disse Messias – mas não posso aceitar o seu convite. Só passei aqui para tomar rapidamente um chope. Tenho de ir à Chefatura de Polícia, com urgência.

-- Posso ajudá-lo em alguma coisa ?

-- Não, Agepê. Aconteceu uma tragédia na minha fazenda. Uma enorme onça, faminta porque há dias acossada por caçadores, apareceu lá, matou a minha secretária doméstica, que você conhece bem, e a devorou, depois de estraçalhá-la, deixando no local tão somente as suas partes pudendas, intactas.

-- Meu Deus! Que coisa horrível!. Estou bestificado! A onça devora a moça mas deixa as partes pudendas da infeliz! Como se explica isso ?

-- É fácil, Agepê: o que é do homem o bicho não come.

Fez um gesto de cumprimento e saiu, às gargalhadas.

levy pereira de menezes
Enviado por levy pereira de menezes em 06/12/2006
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