Um desejo antigo
Em uma noite friorenta, lá pelas dez horas, o último cliente do Bar do Dragão foi-se embora – cambaleante, é claro. De onde eu estava, fiquei a olhá-lo; e não demorou, sem antes catar uma canção qualquer, a se estatelar no chão, sua face enterrada na lama. Servi-me de outra cerveja e, tacitamente, me perguntei se aquela cena não seria encenada por mim após algumas horas.
Subitamente, agasalhado dos pés a cabeça, apareceu-me o Zaquiel. Não que sua aparição me impressionasse – eu o esperava fazia alguns minutos -, mas seu semblante possuía não sei o quê de incomum. Esperei ele sentar-se para expressar minha surpresa.
- Que cara, companheiro!
- E tenho outra!
Zaquiel era um sujeito médio, cor morena, de cabelos rasos e rente, grande olhos negros. Possuía aspectos já saturados na população, como os dentes mal enfileirados na boca. Era um sujeito de enorme inteligência, mas que, todavia, tinha alguns declínios. Mesmo sendo eu seu amigo de infância e, por vezes, compartilhador de suas loucuras, às vezes eu me surpreendia com a volubilidade de suas feições. Estava resfriado. Segundo ele, devido a um ato extremado na noite passada. Mesmo assim, e para meu espanto, pôs-se a olhar para todos os lados e, depois de certificar-se que não havia mais ninguém além de nós e o dono do bar, enfiou duas fileiras de cocaína narinas adentro. Sobressaltado, percebi que o dono do bar vira tudo. Não obstante, ele riu e apoiou com um aceno de cabeça.
- Vamos – disse Zaquiel levantando-se e bebendo de um trago o copo que eu lhe servira.
Após andarmos alguns metros, entramos em um carro que nos esperava. Bastou o carro arrancar, para o mutismo de meu amigo acabar.
- Quando o vi sentando, pensei “Aí está um homem!” É que ontem, quando me deitei para dormir, pensei que você não viria – porque até então eu nunca pensei que você tivesse coragem para uma coisa dessas -, mas quando lhe vi sentado, me esperando, eu fiquei extasiado por mostrar a minha desconfiança que você é realmente meu amigo...
- Ainda tem um pouco de cocaína? Estou sóbrio.
A risada de Zaquiel preencheu todo o veículo. Eu tinha aversão à cocaína. Por isso, depois de usá-la, fiquei furioso. O carro parou defronte a uma casa suntuosa, envolta pela névoa friorenta.
- Pronto?
- Pronto!
- Antes de tudo, é bom que saiba, o Senhor não está em casa. Na casa só há duas mulheres, mãe e filha. Levamos o que elas têm e vamos embora, já que o senhor não está... Pense em um sujeito extravagante! Há muito que estou em sua cola, observando-o. Na outra semana me apareceu com uns diamantes nos dedos... Pois bem, vamos!
Com uma agilidade felina, Zaquiel escalou o muro silenciosamente e, com um alicate, cortou a rede telefônica. Se houvesse alguém na rua em que estávamos, veria uma sombra horrenda trepada no muro. Todavia, não havia uma alma viva nas redondezas.
- E a cerca elétrica? – perguntei eu, intrigado com a confiança que meu amigo tivera em tocá-la.
- Não funciona. Certifiquei-me um dia, com um gato.
A casa permanecia no mais profundo silêncio. Era, realmente, uma casa singular. Zaquiel falara dela, assim por alto; uma casa luxuosa, com área verde, piscina e garagem espaçosa. Pareceu-me deslumbrante sua entrada, e que maravilha era ela em seu todo.
- Estão dormindo. – murmurou Zaquiel.
Este, em um pulo, retornou para cima do muro, estendendo-me a mão. Com muito custo subir no muro. Descemos e nos escodemos atrás de um pequeno muro que circundava a casa.
- Fique aqui – recomendou meu amigo – até eu voltar. Abrirei a porta da frente.
Nisso ele perdeu-se na escuridão. Dentro de alguns minutos ele reapareceu ofegante e desconfiado. Segundo ele, parecia-lhe não haver ninguém em casa. Sua frustração era devida a forma a que ele imaginara para a invasão. Tinha certeza, pois havia passado um bom tempo observando aquela casa e seus moradores, tinha certeza que o Senhor viajaria e que a filha e a mulher estariam em casa. Mas eis que a casa estava vazia! Perdera o elemento surpresa e a adrenalina, pelo menos em parte. E isso mudava tudo.
- Tanto pior para eles! – consolou-se ele.
E nisso entramos. Com efeito, depois de uma revista completa na casa, concluímos que ninguém estava na casa. Zaquiel não podia esconder sua frustração. “Devem ter indo para algo extraordinário.”, dizia ele. Desde que entrei na casa, algo estranho arrebatara-me. Algo pueril. Ver aquela casa, todo mobiliada e reluzente, com adega, espaço para livros, tapete árabe, louças chinesas, jardim e piscina...
- Olha só esse sofá – disse eu desconcertado, sentando e conferindo a confortabilidade.
Zaquiel me imitou. – Realmente – animou-se ele – é muito confortável!
- E essa sala, olha como ela é ampla, da umas dez da minha casa!
Zaquiel passou os olhos pela casa e, creio eu, foi arrebatado pelo mesmo sentimento que me infligia. Seus olhos brilharam e um semblante que beirava a loucura se desenhou em seu rosto. Armou-se de uma garrafa de conhaque que achara em uma estante – sempre gostou de estantes com bebidas, mas nunca teve uma – e me ofereceu um copo. Tomamo-la em poucos minutos. Nisso o rádio estava ligado e Zaquiel dançando como um louco na sala. Juntei-me a ele. Rimos e cantamos, estávamos felizes. A noite passou rápido; Zaquiel, na maior parte do tempo, bebendo a nadando na piscina; eu, bebendo muito também, namorando a estante repleta de livros. “Amanhã receberemos correspondências do carteiro, e veja só você, ele pensará que nós somos os donos da casa!”, dizia Zaquiel, prostrado pela embriaguez, sentando no sofá. “Isso mesmo!”, confirmava eu, ao seu lado. “Não deixaremos ninguém entrar em nossa casa, não é, meu camarada?” “De forma alguma”, continuava a confirmar eu, “De forma alguma.”
- O que acha de pintarmos a casa de azul?
- Azul?... É! Azul! Faremos isso assim que amanhecer.
- Perfeito! Mudaremos aquela estante também, está muito mal posicionada. – e colocou-se a movimentar os braços loucamente - Colocaremos luz indireta por toda parte, compraremos cachorros e gatos, um aquário, um carro... gosta de conversíveis?
- Sim, como não.
- Conversível então.
- É uma pena... Você cortou a rede telefônica. Poderíamos pedir pizza.
E Zaquiel pôs-se a chorar.
Já fazia algumas horas que os vizinhos desconfiavam que a casa da Família Teixeira havia sido invadida. Suas desconfianças foram confirmadas quando os policiais que eles chamaram lhes disseram que encontraram dois homens dormindo no sofá, embriagados. A Família Teixeira, com um novo veículo – um conversível, se desfez do sofá e pintou a casa de azul, a fim de esquecer o episódio, que, diga-se de passagem, os irritou sobremaneira.