JERÔNIMO DE A PÉ

Isto aconteceu, na primeira metade do século passado, no 3.º distrito de Canguçu – RS, lugar denominado “Lajeado”. Essa denominação decorre do grande número de formações rochosas de superfície presentes naquela área.

Numa festa de carreira de cancha reta, um preto, já de idade, de nome Joaquim, com grande prestígio na localidade, a mando do Subdelegado e Capitão da Guarda Nacional cujo nome não é revelado pelo grande número de descendentes que convivem conosco em Canguçu, foi insultado e agredido por policiais presentes ao evento.

Ocorre que Joaquim, mesmo com alguma dificuldade para se locomover em decorrência de problema na articulação superior do fêmur, estava dando sota e basto para os milicos com o uso de bengala que utilizava para se equilibrar ao caminhar.

O Subdelegado, que se encontrava sentado na barraca que fornecia o pastel e a bebida para a festa, ao ver que seus apaniguados estavam passando vergonha com as lambadas que levavam pelo lombo do preto Joaquim, sacou o revólver, S&W 45, e fez pontaria para matar o crioulo, à vista de todos os presentes.

Pela perícia que o Subdelegado tinha no manejo do revólver, todos viram que a morte de Joaquim seria uma questão de segundos.

Alguns dos presentes chegaram a ir para fora da barraca a fim de ver o negro cair, outros, menos corajosos, levaram as mãos nos ouvidos para não ouvir os disparos.

Foi então que ocorreu algo totalmente inesperado por todos, inclusive e principalmente pelo escalado algoz.

Como se por um milagre, foi ouvido um disparo e que não era da arma do Subdelegado que, ato contínuo, se contraiu dando conta de que havia sido atingido com aquele tiro que estava fora da expectativa de todos.

De imediato o Capitão da Guarda Nacional, também Subdelegado, deixando cair a arma antes apontada ao negro Joaquim, levou sua mão direita ao lado direito do abdômen e o sangue verteu sobre a sua roupa.

Logo veio a indagação sobre quem tivera a ousadia de atirar em tão temida autoridade e, assim fazendo, impedisse a execução do negro Joaquim.

O banzé era grande!

Enquanto isso, outro Capitão da Guarda Nacional, homeopata nas horas vagas e com morte nas costas, que estava muito embriagado, dava tiros para cima, na vã tentativa de acalmar o entrevero.

Enquanto os presentes davam socorro ao Subdelegado ferido, as “investigações” prosseguiam para saber quem era o autor do fato inusitado.

Ocorre que na festa também estava presente um negrinho, muito pobre, chamado Jerônimo que, por não ter nenhuma condição financeira, não possuía nem mesmo um cavalo de montaria, situação considerada quase um pecado naquela época, por isso o chamavam, em tom pejorativo de “Jerônimo de A Pé”.

O que ninguém lembrava é que “Jerônimo de A Pé” era sobrinho do negro velho Joaquim e, ao ver o tio em iminente perigo de morte, na mira do Subdelegado, atirou de pontaria neste, ferindo-o gravemente.

A questão que ficou sem resposta é como que “Jerônimo de A Pé” conseguiu um revólver na hora do perigo. Ele era pobre. Não tinha dinheiro nem mesmo para comprar um cavalo de montaria. O que dizer para comprar um revólver? Era um homem humilde e fora de encrenca.

Nunca houve resposta para tal indagação!

O que se supõe é que o Subdelegado tinha outro desafeto na região e que estava presente na festa. Tal pessoa estaria próxima a “Jerônimo de A Pé” e lhe entregou a arma para que pudesse ser utilizada por este na defesa de seu tio.

Daquele dia em diante surgiu um “matreiro” naquelas bandas, seu nome mudou para “Jerônimo de A Cavalo”, viveu muitos anos, viu seu tio, por ele salvo, morrer de velho, sempre honrado, e passou a contar para sua sobrevivência com a ajuda de maragatos, contrários aos chimangos, partido este do Subdelegado, bem como de outras pessoas que não mantinham boa relação com a vítima ou que não estavam se importando com o fato.

Dizem os antigos que algum tempo depois, talvez um ano, o Subdelegado veio a morrer em conseqüência do tiro que sofreu.

Esqueci de contar que a nova figura de Jerônimo também fazia algum “servicinho” para fazendeiros da região, seja do lado de Canguçu, como de Piratini e Encruzilhada do Sul.