C.A. Curso de Analfabetos.

Eu tinha sete anos quando ingressei no antigo C.A. ( Curso de alfabetização) sigla que meu irmão Luciano – já alfabetizado – dizia significar “ Curso para Analfabetos”. Eu ficava atordoado, afinal mesmo não sabendo muito bem o que significava analfabeto tinha uma certeza; não era coisa boa.

Na escola cheguei a perguntar pra tia Marlene o que era o C.A. e ela muito ríspida respondeu:

- É onde a gente aprende a deixar de ser burro.

Apesar de não entender muito bem resposta, fiquei satisfeito afinal era melhor aprender a deixar de ser burro do que estudar para ser analfabeto.

Cheguei em casa decidido a desmascarar meu irmão Luciano. Ele estava no quarto contando suas bolinhas de gude. Entrei como quem não quisesse nada e perguntei:

- Ô Lu, você fez o C.A. ?

Ele concentrado em suas gudes respondeu com um desprezo que só os menores de 10 anos tem:

- Eu não, eu já fui direto pra primeira série. Curso de analfabetos... – E soltou uma risadinha debochada.

Imediatamente contra ataquei.

- Bem se vê que você não deixou de ser burro.

- O que ?

- Eu perguntei pra tia e ela disse que o C.A. é onde a gente aprende a deixar de ser burro. Como você não fez continua burro.

- Ah! E! Essa tua tia é uma analfabeta. C.A. Curso de Analfabetos . E saiu levando consigo as suas bolinhas de gude.

Fiquei furioso, decidi que iria aprender a escrever e a ler, mas confesso que não gostava muito dos exercícios: umas cobrinhas sem fim que tínhamos ora cobrir, ora fazer a mão livre. Mas as letras, que eram o que eu realmente gostava, só apareciam de vez em quando e mesmo assim eram todas muito rebuscadas.

O b maiúsculo era um suplicio, e a explicações da tia Marlene, me deixavam ainda mais confuso:

- Vejam crianças, o B é um homem que tem duas barrigas.

Santo Deus, um homem com duas barrigas é a maneira mais bizarra para exemplificar o B. Juro que algumas vezes tive pesadelos com o B correndo atrás de mim. E até hoje quando estou em casa sozinho tenho a estranha sensação de que o B vai aparecer e me devorar.

Outra letra que muito me assustou foi o M.

- Vejam crianças – o mais triste era que tia Marlene sempre pedia que visualizássemos – o N tem duas perninhas e o M tem três.

Três perninhas? Coitado. O único ser vivo que conhecia com três perninhas era o Rex, o cachorro da minha vizinha que perdera uma das pernas num atropelamento. Durante anos alimentei verdadeira compaixão pelo M.

Mas a confusão mesmo começou com o S.

- Vejam crianças como o S é uma enorme cobra pronta pra dar um bote nas crianças que não se comportam. – Falava olhando pra mim.

Meu Deus, eu era o mais bagunceiro da sala. Tinha medo de escrever o S, mas com o tempo percebi que Tia Marlene não era perfeita. E passei a questioná-la.

- Tia, se o S é uma cobra por que a gente escreve cobra com C.

Ela me olhou com os olhos em brasa e confesso que tive a nítida impressão de que ela se transformaria numa anaconda e me engoliria ali mesmo diante de todos.

- Paulo Cezar, você gosta mesmo de complicar as coisas. Falei no sentindo figurativo.

- E o que é figurativo?

- É uma coisa que é, mas não é.

Calei na hora, mas tal informação me trouxe um bloqueio, que se acentuou, anos depois quando na Filosofia me deparei com Descarte: A é A e é impossível que seja, ao mesmo tempo e na mesma relação, não-A”, mas isto é outra estória. Voltemos as minhas primeiras garatujas.

Eu não entendia as explicações da Tia Marlene.

- A letra O é redonda como uma bola e serve pra escrever Olavo.

Meu Deus, como escrever era complicado! Uma .invenção de alguém que não batia muito bem das bolas. Durante semanas escrevi ola ao invés de bola.

Lembro que Tia Marlene rabiscava meu caderno, escrevia bola bem grande com uma caneta vermelha e depois dizia:

- Quando é que você vai aprender que bola se escreve com B.

- Mas tia, se o O é redondo como uma bola porque eu preciso escrever com B.

- Porque é com B. Os gramáticos decidiram que é assim e não vai ser você quem vai mudar as regras.

Naquela noite tive um terrível pesadelo. Sonhei que tia Marlene tinha me levado para o mundo dos gramáticos e eles eram todos homens de duas barrigas.

Durante quase um mês pelejei para aprender o alfabeto. O que era um deleite para o meu irmão Luciano que vivia perguntando:

- E aí analfabeto, que letra é essa aqui. Ele adorava apontar o W .

Tia Marlene dizia que o W era um M que ficou maluco e por isto andava de cabeça pra baixo.

Escrever era coisa de maluco. Como se não bastasse homens de duas barrigas, cobras prontas para dar o bote, letras com três perninhas, agora surgia um lunático que andava de ponta cabeça. Quase acreditei no Luciano, o C.A. era realmente um curso para analfabetos. A gente descobria que escrever era tarefa para os desprovidos de razão.

Minha sorte foi ter um irmão mais velho com juízo. Jacinto gostava de história e vivia falando dos gregos, dos romanos, dos persas e dos egípcios. E foi com ele que aprendi que o alfabeto era um código para os sons. Mas para me fazer entender o alfabeto ele pegou pesado. Nada de letrinhas com formatos fabulosos. Ele foi logo me apresentando os hieróglifos.

Quando vi aqueles símbolos tão estranhos e difíceis de escrever acabei optando abecedário. Aprendi em menos de quinze dias.

E descobri o mundo. Queria ler tudo. Lembro que eu ia no ônibus lendo todos os letreiros das lojas e quando enjoava ficava decifrando as palavras escritas nos jornais. Meus pais no começo ficaram orgulhosos, mas dois meses depois já não agüentavam me ouvir lendo em voz alta todas as palavras que encontrava. Lembro que meu afã era tamanho que eu lia até as marcas das calças das mulheres: Lee. Us top provocavam verdadeiras gargalhadas no coletivo. Foi nesta época que aprendi que as pessoas tem uma tendência bizarra de rir de quem esta aprendendo.

Nesta época meu pai me deu meu primeiro livro. “Memórias de um cabo de vassoura” de Orígenes Lessa. Minha mãe reclamou dizendo que era u livro muito grosso para um menino de apenas sete anos.

- Você tinha que ter comprado aquela revista “Recreio”, sai toda semana.

E meu pai respondeu.

- Comprar revista toda semana que nada, comprei este livro no sebo pelo preço de uma revista, o menino vai levar mais de um mês para ler.

Ledo engano, li em apenas duas semanas e quem sofreu com meu aprendizado foi minha mãe.

Minha dificuldade não era a grafia das palavras mais o significado delas. Eu ficava lendo sentado na área de serviço do apartamento enquanto minha mãe ia fazendo as tarefas de casa, a cada dúvida eu perguntava:

- Mãe, o que é piaçava? E ela mostrava a vassoura.

- Mãe, o que é desprezo. E ela ficava calada

- Mãe, o que é desprezo? E ela continuava calada.

- Mãe, desprezo, por favor, o que é?

E Quando eu estava prestes a ter u acesso de ma criação ela dizia:

- Desprezo é isto que eu fiz. È não dar importância as pessoas ou as coisas.

Depois de memória de um cabo de vassoura veio “Napoleão em Parada de Lucas”. E lá se foi meu pai pro sebo comprar o livro. Fiquei tão impressionado com as aventuras de Napoleão em Parada de Lucas que queria conhecer o bairro. O que era um problema já que morávamos em Brasília e Parada de Lucas ficava no Rio de Janeiro.

Foi um tormento. Em casa meu pai vivia dizendo que em breve iríamos morar no Rio de Janeiro e ele iria me levar até Parada de Lucas. Na escola Tia Marlene não podia mais ouvir falar em Napoleão e continuava a me torturar com frase do tipo: Diva viu o anel da vovó. Vovó deu o anel para Diva.

- Tia, quem é a Diva?

- Uma menina.

- Onde ela mora?

- Ora eu lá sei onde ela mora? Que pergunta mais sem cabimento.

- Por que a vovó deu o anel para Diva?

- Porque ela quis dar .

- Mas ela é uma menina, não vai caber no dedo dela.

- E daí que não vai caber no dedo?

- Daí que ela vai perder...

- Vai sentar menino, vai sentar que você me tira do sério com estas suas perguntas sem pé nem cabeça.

E como se não bastasse mandou um bilhete pra minha mãe pedindo que não me deixasse ler porque a leitura estava atrapalhando o meu aprendizado em sala de aula.

Ainda bem que meus pais não deram ouvidos.

PS- Só fui a Parada de Lucas 30 anos depois como parte de uma iniciação à minha carreira no Magistério.