A LUZ DE FINADOS


(Para meu amigo Levy, que, por conta própria, muito cedo partiu desse mundo.)


          A noite desceu como uma pesada cortina negra a nossa frente. Os faróis enlameados do fusca revelavam repentinos espectros nos barrancos da estrada, aberta de recém na densa floresta do norte do país. Há muito havíamos deixado para trás a pequena cidade, onde tínhamos abastecido o carro e comido sanduíches. Não saberíamos dizer, naquele momento, em que ponto do Maranhão estávamos exatamente, pois o trecho da futura rodovia BR 226 era coalhado de imensas lagoas de água vermelha que me obrigavam a dirigir bem devagar, tentando adivinhar as partes mais rasas por onde o veículo pudesse passar. “Tenham muito cuidado!”— aconselhara o tenente ao liberar nossa passagem em Porto Franco. “Vocês serão os primeiros civis a cruzar esse trecho. Esperem o dia amanhecer para atravessar a primeira ponte provisória da estrada”.

          Meus companheiros viajavam despreocupados, apesar de tudo. Levy, magro de pernas compridas, sentava-se no assento da frente, ao lado do motorista. Com o corpo torcido para trás, ouvia o Carlão contar mais uma de suas histórias tenebrosas. Carlão sempre tinha alguma coisa para contar. Era um tipo bonachão, o cabelo prematuramente mesclado de nesgas cinzentas. Tinha o hábito de falar devagar e impostava a voz de maneira a adequar-se ao suspense da narrativa. Fumava muito, e aproveitava cada cigarro para criar expectativa, ora ao acendê-lo, ora ao dar profundas tragadas. Não gostava de ser interrompido com perguntas e não admitia ser instado a apressar o fim da história. Era impossível não prestar atenção ao que ele dizia. Assim, eu escutava também, repartindo minha concentração entre a estrada e a história.
          
          Dizia ele que numa noite ainda mais escura que aquela em que estávamos mergulhados, um compadre dele lá de Araçatuba voltava da cidade por uma trilha que atravessava fazendas e matas em direção ao sítio onde morava. Era dois de novembro e ele tinha ido ao cemitério visitar o túmulo da mãe, falecida seis meses antes, pobrezinha. Ela fora arrastada por uma parelha de cavalos assustados por uma cobra e mutilada pelo arado batendo a esmo, de tal forma, que partes de seu corpo se perderam na terra tombada. Ele ia por aquela sinuosa trilha com dificuldade, pois tinha inadvertidamente ligado a lanterna durante o dia e agora as pilhas estavam vazias de energia. Blasfemava a todo instante se tropeçava em tocos na terra recém-desmatada ou atolava o pé em monturos frescos de estrume de boi. Começou a amaldiçoar o fato de não haver no céu uma única estrela para guiar-lhe o trajeto. E assim, resmungão, seguia inseguro seu caminho por grotões e descampados naquela noite de finados. Uma légua depois, percebeu no negrume do céu uma ínfima luzinha brilhando timidamente. O ponto de luz aparecera logo acima do horizonte na direção da cidade. Talvez o céu começasse a limpar — pensou. Depois ficou curioso, o ponto de luz não estava parado. Quem sabe um avião, desses pequenos, que alguns fazendeiros possuem. Conjeturou depois que não poderia ser um avião, pois se fosse um dos pequenos, não poderia estar voando àquela hora e se fosse dos grandes, haveria mais luzes e o ronco dos motores certamente poderia ser ouvido no silêncio daquelas lonjuras. O fato é que a luz vinha se aproximando e aumentando de intensidade. O compadre estava deveras surpreso com aquilo, pois a luz parecia ter se imobilizado a uns quinhentos metros verticalmente bem acima de sua cabeça. O chão batido de passos e rastros de carroças por onde ele seguia estava agora claro como o dia...

          Caro leitor, consinta-me o atrevimento de interromper a história para dizer-lhe que meu amigo Carlão, nesse ponto da narrativa, fez exatamente o mesmo. Ele procurou um novo maço de cigarros, localizou com cuidado a fitinha que permite abrir o maço sem estragar a capa de celofane, cortou diligentemente o papel alumínio do topo, bateu o maço na lateral da mão e, finalmente, retirou um cigarro. Levy e eu esperávamos, impacientes, o fim daquele ritual. Ele levou outro século para pescar o isqueiro de um dos bolsos, acender o cigarro e dar a primeira tragada. Mas isso era bem dele, como já disse.

          “O compadre era um homem prático e destemido...” — continuou Carlão, satisfeito com a ansiedade que criara em nós, seus ouvintes cativos — “mas a todo o momento o compadre olhava para cima. A estranha luz lá estava. Intrigado, deu-se conta de que a luz se movia acompanhando seus passos. A luz não era um foco único como o de uma lanterna ou farol, ela emitia quatro ou cinco fachos de luz que clareavam todo o caminho a sua frente. Ele não entendia o que poderia ser aquilo. Amedrontado e trêmulo, apressava o pé forçando-se a não pensar naquela extraordinária luz que iluminava seu caminho. Mentalmente pediu perdão por ter praguejado contra a falta de estrelas no céu e ansiava por chegar logo a seu destino, mas a luz o seguia no mesmo ritmo e agora vinha muito mais baixa, não mais de cem metros acima de sua cabeça. Crescia-lhe no peito uma angústia avassaladora. Ele pressentia a proximidade da luz pela intensificação da claridade a sua volta e pelas sombras de seu corpo que ora se esticavam, ora se encolhiam a cada passo. Num ato de coragem, olhou para cima e a luz encheu-lhe os olhos. A luz vinha bem atrás dele com toda certeza e ainda assim era impossível dizer o que poderia ser aquilo. A luz provocava em seu corpo desagradáveis arrepios, como aqueles que se tem ao urinar ao relento numa noite fria. Mamãe costumava dizer, em sua santa ingenuidade, que sentimos esses arrepios toda vez que a morte passa perto. A coisa, fosse lá o que fosse, emanava uma luminescência azulada como fogo fátuo e parecia estar cada vez mais próxima a medida que ele apertava a marcha para alcançar a casa que já se divisava também envolta pelo enigmático halo luminoso. Aliviado e sôfrego, ele entrou e fechou a porta. Em vão. A misteriosa fosforescência invadia a casa por todas as visíveis e invisíveis brechas das paredes e do teto. O compadre, como fazem a crianças medrosas, correu para o quarto e atirou-se sob as cobertas. Não ousava descobrir a cabeça e abrir os olhos. Finalmente, arriscou uma olhadela de soslaio e ficou estarrecido quando viu que a coisa de luz estava dentro de seu próprio quarto, pairando sobre a cômoda, brilhando, porém, apagando-se pouco a pouco, como uma lamparina no fim do querosene. Começou a rezar, embora não tivesse esse hábito. Rezou muito. Depois percebeu, perscrutando através das costuras da colcha de retalhos, que não havia mais qualquer vestígio de claridade. A escuridão era total. Ainda matutou muito sobre o que poderia ser aquilo que desaparecera no ar bem acima de seu móvel. Vencido pelo cansaço e mesmo com medo, pois que não conseguira atinar com nenhuma explicação plausível, adormeceu.

          No outro dia acordou refeito e certamente nem se lembraria do estranho acontecido da noite anterior, não fosse o fato de que, ao abrir a gaveta de meias, deparou, sobre a cômoda, uma mão humana, ressequida, enegrecida pelo tempo e em cujo dedo anular ele reconheceu o anel de safira de sua falecida mãe.


 
HFigueira
Enviado por HFigueira em 05/07/2011
Reeditado em 01/02/2012
Código do texto: T3076411
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