A TESTEMUNHA

O Estado do Espírito Santo teve seu território invadido pelo Estado de Minas Gerais, na região Norte, razão por que foi criada a comarca de Barra de São Francisco. Era uma espécie de sentinela avançada, para proteção do território capixaba. A sociedade, tanto capixaba quanto mineira, vivia em constante desassossego, não só pela iminência de um conflito armado, mas, também, em razão dos inúmeros crimes de homicídio, consumados e tentados, praticados de um e de outro lado. O pior é que, aquele que praticasse um delito em Minas e escapasse da prisão, certamente vinha para o Espírito Santo, onde recebia cobertura das autoridades. Da mesma forma, aquele que praticasse um crime do lado de cá, corria para Minas e lá recebia toda sorte de proteção.

Certa vez apareceu lá no CONTESTADO, como era chamada a região, um repórter que entrevistou, em Mantena, MG, um conceituado médico cujo nome se omite, sobre as inúmeras pessoas, vítimas de disparos de arma de fogo e que ele havia operado. Dias depois, um jornal do Rio de Janeiro publica uma foto do referido médico segurando uma pequena bacia esmaltada (das tais chamadas bacia de rosto) cheia de chumbo extraído dos corpos das vítimas por ele operadas, com a seguinte legenda, escrita pelo saudoso Stanislaw Ponte Preta:

“Pelo visto, Mantena não tem população, mas sobreviventes”.

Em São Francisco a situação não era muito diferente. O Cartório Criminal estava abarrotado de processos. Era tão grande a quantidade de processos que o Juiz não pedia tantos processos, mas tantos metros de processos.

Numa terça-feira de maio de 1957 o salão do Fórum de São Francisco estava cheio de gente: testemunhas, acusados, militares da escolta, curiosos, funcionários da justiça, etc. Cinco sumários estavam designados para aquele dia. O Juiz, já no seu lugar, determinou ao Porteiro dos Auditórios que fosse feito o pregão das partes e testemunhas. Feito isso, tomaram assento nos seus respectivos lugares o Dr. Promotor de Justiça, o acusado, devidamente escoltado e acompanhado de seu advogado e a testemunha, analfabeta de pai e mãe, moradora num grotão qualquer do município. Registre-se que a testemunha, quase sempre, fica próxima do escrivão.

Começa-se a audiência, com a qualificação da testemunha. Pergunta-lhe, então, o Escrivão:

-- Seu nome, por favor ?

-- O meu ?

-- Sim, o seu – diz o escrivão.

-- João – responde a testemunha.

-- Mas o senhor deve ter um sobrenome, não ?

-- Tenho sim, sinhori.

-- E qual é, então ?

-- Pereira, por parte de mãe.

-- E por parte de pai ?

-- Silva – resmunga a testemunha.

-- Então – diz o escrivão – o seu nome completo é João Pereira da Silva ?

-- É.

--Muito bem. Qual o seu estado civil ?

-- Como assim ?

-- O senhor é casado, solteiro, viúvo ou desquitado ?

-- Quem, eu ?

-- Sim, o senhor mesmo.

-- Casado.

O escrivão anota, então, na assentada, que a testemunha é casada. Quando ia fazer nova pergunta, ela, a testemunha, adverte:

-- Quer dizer, sou casado, mas só no crisiasti.

O que a testemunha queria dizer é que somente se casara eclesiasticamente, isto é, só se casara no religioso.

O escrivão, prosseguindo sua “via-crucis”, recomeça a qualificação da testemunha:

-- Onde o senhor nasceu ?

-- Quem, eu ?

-- É, o senhor.

-- Num tenho certeza, mais parece que foi na casa da minha madrinha, chamada Querubina, a única parteira que tinha no lugarejo.

-- E como se chamava tal lugarejo ?

-- Que eu nasci ?

-- Exatamente.

--Santo Augustim, explica.

(Santo agostinho era um distrito de Barra de São Francisco).

Resolvida a questão anterior, o escrivão, até então com paciência, pergunta:

-- Em que dia, mês e ano o senhor nasceu ?

-- Quem, eu ?

-- É o senhor mesmo.

-- Sei não. É muita coisa pra guardá na minha cabeça.

-- O senhor sabe, pelo menos, quantos anos tem ?

-- Quem, eu ?

O escrivão, naquelas alturas, com o bornal cheio, disse:

-- Não, eu.

A testemunha inclinou o corpo para o lado direito, examinou o escrivão dos pés à cabeça, e, sem qualquer dúvida, tascou:

-- O sinhori tem vinte e treis anos.

Risos na sala, inclusive do circunspecto Magistrado.

Mas o mais engraçado é que o escrivão tinha, exatamente, vinte e três anos de idade

levy pereira de menezes
Enviado por levy pereira de menezes em 02/12/2006
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