Presa e caçador

Duas semanas depois...

O dia ainda não havia clareado completamente. Só as copas das árvores mais altas recebiam os primeiros raios de sol. Lá embaixo, confortavelmente enrolada em espiral sobre o próprio corpo, camuflada nas folhas secas, a surucucu Pico-de-jaca sentiu uma leve vibração no solo, depois no ar. Não fosse pela fome ela nem daria importância. Mas já fazia dias desde que fizera sua última refeição... Colocou-se de prontidão, em posição de ataque. Pouco a pouco a vibração no ar e nas folhas foi aumentando, crescendo, chegando mais perto. Estava com sorte. Era só esperar mais um pouco.

Instantes depois podia sentir o cheiro de sua presa. Não podia enxergá-la, mas já sabia que era uma ave. O barulho do andar, a vibração das penas, o ritmo da aproximação... Não precisaria esperar muito, sua comida estava ali, há poucos metros.

Alheia ao perigo, a sururina seguia adiante, mariscando uma formiga aqui, um besourinho ali, uma flor acolá... Nem suspeitava que alguém a espreitava, faminto.

O encontro foi rápido e intenso: a nambuzinha parou abruptamente, estarrecida e paralisada pela imagem da cobra em sua frente. Era a primeira vez que se deparava com uma situação tão decisiva. Ficou quieta, imóvel. Apesar da inexperiência da pouca idade, os genes de seus ancestrais atuavam decisivamente, fazendo com que ela se comportasse daquele modo. Mas, precisava agir. A cobra não ia demorar muito a dar o bote fatal.

Olhando diretamente para a cobra, a nambuzinha reuniu forças e atirou-se desesperadamente no ar. Seu corpo tenro voou incrivelmente veloz, enquanto a cobra desferia seu golpe impiedoso e mortal. Recolhera o corpo e achava que não teria dificuldade em apanhar aquela presa que displicentemente chegara tão perto.

Entretanto, ao disparar seu golpe mortal, não contava com a reação instintiva da presa, que, num salto desesperado, se atirara ao vazio, desviando milimetricamente de um grande cipó escada-de-jabuti...

Nem uma nem a outra sabia ao certo o que ocorrera. Mas, ao final daqueles milésimos de segundo, a cobra fincara seus dentes no velho cipoeiro e a nambuzinha cruzava os ares, no vôo mais longo de toda a sua curta vida, até cair, esgotada, a setenta metros dali. Encolhida ao pé de um gigantesco Angelim descansou por alguns minutos, seguindo depois adiante, logo esquecendo aquele grande susto.

Decepcionada e ainda com mais fome – pela energia desperdiçada em vão – a cobra arrastou seu corpo de mais de um metro para outro local e voltou à quietude de sempre. Esperaria outra presa. É certo que da próxima vez teria melhor sorte.

Há dois quilômetros dali, na casa de Madalena, a agitação era grande. Surpreendentemente já não se fazia mais nenhuma referência à morte de André e, como nos dias anteriores, ela se levantara cedo e já preparara o cuscuz, fritara ovos e acabava agora de juntar tudo, numa farofa cheirosa, de intenso amarelo.

Do Livro “As escolhas de Pedro” – de Azé di Souza (Inédito)