SANTA IGNORÂNCIA

-Sai desse chuvisco , Bernadete, tu quéis pegar um difruço, menina marvada!Arriba pra dento de casa, queu tenho mais o que fazê do que corrê atrai de fia. Vai, entra.

-ô mãe, deixa eu.Todo mundo leva chuva e num pega difruço, pruquê eu vou pegar?

-Pru que tu é fraca dos pulmão derna de pequena. E deixe de lenga lenga, passe pra dento de casa que eu num quero fia minha correno na rua atrai de chuva não.

Revoltada, mas entrou. Se desobedecesse, ia pra palmatória. Parece violento? Mas funcionava assim. Também de que outra forma uma mãe se faria obedecer por doze filhos?

-Bastião e Binidito tão tomano bãe de chuva.

-Eles são de maió. Já tem 15 e 16. Tu só tem 12. Vai secá esses cabelo, istica eles e bota um elástico mode assentá na cabeça, menina. Já tá quase na hora de tu ir pá escola.

Dona Inácia era viúva. Tinha doze filhos vivos de dezessete partos. Vivia da pensão de agricultor que o marido a deixara. Sua filha mais velha, Aparecida, já trabalhava na loja de pano de seu Agaiço e ajudava. Os dois rapazes de 16 e 15 faziam alguns bicos na feira. Dona Inácia lavava e passava roupa pra fora, ajudada por Bernadete e Zumira sua outra filha de 13 anos.Adelia a de 14, tomava conta dos irmãos mais novos. Dava banho, comida e levava para a escola.Uma vez na semana, as meninas se juntavam e limpavam a casa e os rapazes o terreiro. Era quase uma empresa que dona Inácia administrava com maestria. Apesar da pobreza, todos iam a escola. –Quero criá burro não, dizia.Fio meu vai ter que aprendê a lê .

Bernadete se arrumou para ir a escola.Farda tinha, a prefeitura deu até os congas e os livros. Era a única que estudava a tarde. Lanche não tinha, pois não podia comprar e a escola não fornecia nessa época.Nesse dia saiu de casa tão chateada porque não pudera brincar na chuva, que nem comeu o feijão com tripa , arroz e farinha da dona Inácia. Na hora do recreio estava mortinha de fome.

Ora, em frente ao grupo escolar morava uma velha sozinha numa casinha escura com um grande pé de tamarina no quintal. Os alunos tinham medo dela, achavam que era bruxa e por mais que desejassem as tamarinas, não se atreviam ir lá. Mas por estar faminta, Bernadete foi:

-Dona Filó?Dona Filllllóóóóó...

-Quem é?

-Bernadete fia de Ináiça.

-Qué que tu quês?

-Tou é cum fome, dona filó. Será se a sinhora dava umas tamarina a eu?

-Tão tudo verde.

-Tem nada não, se a sinhora me dé um tiquim de sal eu como assim mermo.

-Tu vai tê caganera.

-Vou nada. Dexa, dona filó. Tô de buxo roncano.

-Vai lá buscar. Leva aqui esse saquinho de prástico mode butar elas dento e despoi num arrecrame se tiver caganera, vice?

Sal e saco na mão, Bernadete fartou-se com as tamarinas de dona Filó, porém antes de terminar a aula a barriga começou a dar voltas e a inchar. Parecia um sapo acuado. E o barulho?Trovões e relâmpagos dentro da coitada da menina. Ao término da aula, correu pra casa e de lá para minúsculo banheiro aonde passou mais de meia hora.

-Qué que tu tem, Bernadete? Inqueriu a mãe.

-Acho que é caganera.

-Cumesse o que?

-Nada, nem armoçei hoje!

- e na iscola?

-Nada não sinhora.

-Vou dá um envelope de fitalomicina a tu.

Aplicado o remédio, a barriga acalmou-se, mas a coitada estava assada de tanto defecar. No dia seguinte, voltando a escola, muito pálida e enjoada ainda, comentou com as amigas sua visita a dona Filó e as tamarinas que comeu.

-Menina, foi feitiço, vice? Tu tivesse corage de ir na cá da veia e ela tascou feitiço em tu, vala-me Deus.

-Mas...eu comi muita tamarina...

-Intão! Tudo enfeitiçada! Ainda bem que as tua foi feitiço pra cagá e se fosse mode drumí? Ou alejá?

Convencida que as tamarinas estavam enfeitiçadas, Bernadete nunca mais foi na casa da velha senhora que aumentou sua fama de bruxa, agora com feitiço comprovado e todos deram graças a Deus, no dia em que ela amanheceu morta sentada debaixo da tamarineira com um saquinho de sal na mão.