O caso da D. Ninha

O caso da D. Ninha

Maju Guerra

Minha tia Senhorinha contava para a família um caso digno de toda a atenção. A personagem central era uma conhecida sua que, com a graça de Deus, se perdera no tempo. Titia salientava que a presença da mulher lhe causava uma sensação de desconforto. Da sua parte, conversava mais por puro receio, embora não houvesse atinado ainda com a razão do mal-estar. Sempre que D. Ninha a visitava, surgia alguma história desabonadora sobre alguém. Titia dava um exemplo, ao iniciar a crítica, invariavelmente ela começava com uma frase de efeito:

- Estou preocupadíssima com a mudança de comportamento do Valmir, quisera muito poder ajudar...

E soltava a interrogação no ar. Como minha tia não lhe perguntava a razão, já intuía algum comentário depreciativo, ela continuava com a mesma ladainha, a voz melíflua. Por fim, ao lhe ser indagado o porquê da inquietação, com os olhos brilhantes, afirmava:

- O Valmir está bebendo uma barbaridade, já é alcoólatra, com certeza. Uma noite, D. Carlota o viu cambaleando e quase caindo pela rua, cá pra nós. Ouviu por aí que ele varou a noite no bar do Nelsinho, parece que bebeu o salário do mês. Vai acabar desempregado. Todo mundo sabe, o bar é frequentado por mulher-dama, não sei o que mais pode acontecer. Quem com porcos se mistura, farelos come. Coitada da esposa, e imaginar que formavam um casal tão feliz. Fico com pena dos filhos, coitadinhos! Que tristeza, gostaria muito de poder ajudar!

Saía com o semblante compungido, mas o recado estava dado, não só para tia Senhorinha, é claro. D. Ninha costumava peregrinar pelas casas da cidade. Aparentemente ela não havia falado mal do rapaz, afinal de contas estava apenas desassossegada por conta do seu vício. Em sua opinião, por uma noite Valmir se tornara um viciado em álcool. Quem conta um conto, aumenta um ponto, diz o ditado. Era esse o jeito dela, considerava-se perfeita, sempre se enaltecendo, desacreditar o outro não fazia parte da sua história. Assim, prosseguiam as intrigas com seu poder destrutivo a deixar um rastro de desarmonia. Caso a esposa do Valmir tomasse ciência do seu deslize, que de ocasional, ao que parece, fora considerado habitual pela maldizente mulher, ela ainda poderia se arvorar a consolá-la. Ao final, a mexeriqueira seria a desavisada da D. Carlota, a que lhe disse coisas sobre o Valmir.

Um dia, após sua visita, minha tia pôs-se a refletir: como ela conseguia provocar tanta discórdia se, na verdade, não se referia a ninguém de maneira pejorativa? Em um clarão de lucidez, conseguiu compreender a forma sutil e perigosa usada para criticar o outro. Ao iniciar os comentários com base na pretensa preocupação com o desatino alheio, além de fazer menção à conversa com outra pessoa, terminava por alcançar seu objetivo: encobrir sua habilidade maledicente. Naquele exato momento, titia decidiu que preferia a D. Santinha. Essa era fofoqueira assumida e reconhecida em toda a redondeza, falava tudo olhando nos olhos do ouvinte. Com a D. Santinha, sabia-se com quem se estava lidando, mas o tipo de mexerico da outra era ardiloso, provocava imensos danos. Pessoas que se consideram perfeitas são de causar muita suspeita. Quem não tem defeitos, que atire a primeira pedra. Constatado o fato, tia Senhorinha se precaveu mais ainda. Emitiu somente um alerta para Marlene, a melhor amiga. Acreditou, porém, que ela não entendeu ou fingiu não entender, a questão era bastante delicada. Titia guardou para si o conhecimento da artimanha da D. Ninha, não é sensato se mexer em vespeiro.

Maria Julia Guerra.

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