O sonho de estudar se realizaria. Caderno e lápis no embornalzinho feito no tear da avó. Usando duas trancinhas, chinelos havaianas, um pé de cada cor. Assim adentrou o portão da escola pela primeira vez, sob os olhares de dezenas de crianças que calçavam sapatos de verniz preto e meias brancas. Ao perceber que era alvo de cochichos e risos se encolheu como bichinho do mato. O sinal tocou avisando que a aula começaria.
De volta a casa, pergunta à mãe:
—Mãe, quem vem da roça é bobo?
—Não, minha fia, nóis é tudo igual, tanto faiz nascê na roça ou na cidade, é todo mundo fi de Deus.
—É qui os minino da escola dissero que eu sou boba e feia e qui num tenho sapato, ês num qué rocêra lá não...
A mãe passou a mão nos olhos tentando socorrer a tempo uma lágrima teimosa que começava rolar...
Mariinha, desde que se mudara para a cidade levava almoço até onde o pai trabalhava. O cardápio era sempre o mesmo: arroz com feijão carregados numa panelinha de ferro, pois na casa faltava uma marmita.
De pés no chão e vestido de chita, ia satisfeita pelas ruas de terra. Seu sossego teve fim, quando numa rua deserta quatro meninas maiores e muito bem vestidas se aproximaram:
—Olha só se não é a bobinha da roça que entrou na nossa escola...
—Ieu tô levano armoço pro pai... Ocêis qué o quê?
—Queremos ver o que tem na panelinha preta.
—Uai, é cumê igual todo mundo come.
—Aposto que só tem arroz com feijão, porque você é pobre e gente de roça come só isso.
—Num vô contá e nem mostrá procêis o qui tem aqui não.
—Vamos tomar sua panelinha à força!
Acostumada a correr pelos campos, foi fácil se adiantar escapulindo das meninas. Porém a partir desse dia sua vida virou um tormento. Quantas vezes Chegou em casa suada de tanto correr e o pai reclamava do almoço frio e revirado na panela. Houve dias em que Mariinha tropeçou, deixando a panela cair entornando todo o conteúdo, o que lhe rendeu umas boas chineladas. Mas nunca teve coragem de contar a ninguém até hoje.
Acreditava em anjos. Seu avô lhe dissera que toda criança tem um anjo que a guarda dos perigos. Toda noite pedia ao seu anjo Benedito. (ela o batizara assim)
—Dito, ajuda eu a corrê munto... Ajuda eu a num trupicá... Ajuda eu a num dirrubá o armoço do pai. Dito, protege eu sempre. Amém!
Um dia a mãe de Mariinha foi ajudar numa festa em homenagem a São Cosme e São Damião, onde seria oferecida uma mesa farta a crianças carentes menores de sete anos. Evento denominado “Mesa dos Inocentes” Era um verdadeiro banquete que acabava virando festa pra várias famílias. Ela brincava com as outras crianças quando a mãe lhe entregou a panelinha para levar almoço ao pai. Esse dia estava cansada, havia acordado cedinho para tomar conta dos irmãos menores.
Na rua, antes que pudesse correr, foi cercada e nesse dia não teve como fugir. Por mais que ela pedisse, não tiveram pena e lhe tomaram a panela das mãos.
—Hoje vamos ver o arroz com feijão que a Jequinha leva pro pai dela.
—Anda logo! Vamos derramar tudo no chão de uma vez!
Impotente, Mariinha chorou... Prevendo a vergonha que ia passar dali em diante depois que o assunto se espalhasse na escola. Todos saberiam que em casa comiam praticamente só arroz com feijão.
Enquanto duas seguravam-na pelos braços, outra abriu a panela e olhou. Rosto corado e sem graça,a menina saiu devagar sem dizer palavra. As outras meninas da cidade após virem o que tinha na panelinha, se foram mudas. Mariinha não entendeu o que havia acontecido, retirou a tampa e qual não foi sua surpresa quando viu lá dentro: Arroz, feijão tropeiro, macarronada, batatas, salada e um grande pedaço de lombo assado...
Limpou as lágrimas com a mãozinha empoeirada, na inocência seus nove anos de idade, olhou para o céu e disse:
—Dito, brigada, purque hoje ocê, pois cumê bão na panela do pai.
O tempo passou... Mariinha cresceu e nunca perguntou à mãe se foi ela quem abasteceu a panelinha com as comidas da festa. Desconfio que Mariinha acredita em anjos até hoje.

                     
                  
Nota:Se alguma das meninas da cidade, porventura ler esse texto:

Quando se curte raiva de alguém, é a mesma coisa que se autorizar que essa própria pessoa passe durante o tempo governando a idéia e o
sentir da gente. (Guimarães Rosa)