O Caso do Juiz e do Filho do Marceneiro
I
Já se haviam passado alguns minutos das dezenove horas quando o marceneiro Ezequiel Augusto Garcia despediu-se de seus colegas de trabalho e seguiu a pé como fazia todos os dias por uma movimentada rua da cidade de Marília. Caminhara alguns metros até o ponto e se pusera a aguardar a chegada do ônibus que o levaria de volta a sua residência e à convivência da família.
Ezequiel morava com a esposa e o filho Isaías Gilberto Rodrigues Garcia num conjunto habitacional localizado na periferia daquela cidade do interior do Estado de São Paulo.
Talvez naquele dia o homem estivesse um pouco mais aéreo e tenha vindo caminhando bastante distraído pelo passeio público. Em verdade seu dia de trabalho fora bastante puxado e ele se achava muito cansado naquele momento.
Além disto sua cabeça se achava distante dali. Passara um bom tempo tentando decidir sobre um presente que queria comprar para sua esposa e sua mente divagava, distraída, a esse respeito.
Talvez tenham sido estes os motivos que fizeram com que o homem não percebesse a veloz aproximação de uma motocicleta e também por não ter conseguido escapar com rapidez do impacto recebido pelo choque do veículo contra o seu próprio corpo.
Fora arremessado a vários metros de distância e, ao tocar o solo, provavelmente já se encontrava sem vida.
Entre lágrimas e muita tristeza da esposa, do filho e de outros parentes e amigos, restou à família providenciar um enterro simples mas digno para o marceneiro.
II
Tempos depois a esposa de Ezequiel, a Sra. Elisângela Andréia Rodrigues, contratou um advogado para dar entrada em um processo na 2ª. Vara Cível da Comarca de Marília.
A ação ajuizada em nome do menor Isaías Gilberto Rodrigues Garcia ficou registrada sob o número 25.124/2005. Nela, o jovem Isaías requeria como indenização ao causador do acidente, a pensão de um salário mínimo até que completasse a maioridade, bem como os danos morais decorrentes do falecimento de seu pai.
E por não terem condições financeiras de pagar as custas do processo, o advogado requerera ao final a gratuidade prevista na Lei 1060/50, ou seja, a isenção das taxas e impostos necessários para a movimentação do processo dentro do Poder Judiciário.
No entanto, o juiz de primeira instância negara-lhe os benefícios da justiça gratuita. Para isto ele se armara com dois argumentos: no primeiro dizia que se o garoto filho do marceneiro fosse realmente pobre, teria contratado como advogado um defensor público e não um advogado particular como o fizera. E isto deveria ter sido efetivado através do convênio existente entre a Procuradoria Geral do Estado (PGE) e o Poder Judiciário.
No outro argumento dizia que o garoto efetivamente não comprovara nos autos a sua condição de pobreza, isto é, ser pobre no sentido legal.
Após a publicação da decisão, o advogado de Isaías deu entrada em um recurso junto ao Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Seu objetivo era modificar a sentença do juízo de primeira instância.
O recurso em questão foi o Agravo de Instrumento de número 1001412-0/0. Ele redundou na Sentença de segunda instância datada do dia dezenove de janeiro de 2006. O voto e o relatório do juiz relator, Desembargador José Luiz Palma Bisson, é o que vem registrado a seguir.
III
“Que sorte a sua, menino, depois do azar de perder o pai e ter sido vitimado por um filho de coração duro – ou sem ele -, com o indeferimento da gratuidade que você perseguia.
Um dedo de sorte apenas, é verdade, mas de sorte rara, que a loteria do distribuidor, perversa por natureza, não costuma proporcionar.
Fez caber a mim, com efeito, filho de marceneiro como você, a missão de reavaliar a sua fortuna.
Aquela para mim maior, aliás, pelo meu pai – por Deus ainda vivente e trabalhador – legada, olha-me agora.
É uma plaina manual feita por ele em pau-brasil, e que, aparentemente enfeitando o meu gabinete de trabalho, a rigor diuturnamente avisa quem sou, de onde vim e com que cuidado extremo, cuidado de artesão marceneiro, devo tratar as pessoas que me vêm a julgamento disfarçados de autos processuais, tantos são os que nestes vêem apenas papel repetido.
É uma plaina que faz lembrar, sobretudo, meus caros dias de menino, em que trabalhei com meu pai e tantos outros marceneiros como ele, derretendo cola coqueiro – que nem existe mais – num velho fogão a gravetos que nunca faltavam na oficina de marcenaria em que cresci; fogão cheiroso da queima da madeira e do pão com manteiga, ali tostado no paralelo da faina menina.
Desde esses dias, que você menino desafortunadamente não terá, eu hauri a certeza de que os marceneiros não são ricos não, de dinheiro ao menos.
São os marceneiros nesta terra até hoje, menino saiba, como aquele José, pai do menino Deus, que até o julgador singular deveria saber quem é.
O seu pai, menino, desses marceneiros era.
Foi atropelado na volta a pé do trabalho, o que, nesses dias em que qualquer um é motorizado, já é sinal de pobreza bastante.
E se tornava para descansar em casa posta no Conjunto Habitacional Monte Castelo, no castelo somente em nome habitava, sinal de pobreza exuberante.
Claro como a luz, igualmente, é o fato de que você, menino, no pedir pensão de apenas um salário mínimo, pede não mais que para comer.
Logo, para quem quer e consegue ver nas aplainadas entrelinhas da sua vida, o que você nela tem de sobra, menino, é a fome não saciada dos pobres.
Por conseguinte um deles é, e não deixa de sê-lo, saiba mais uma vez, nem por estar contando com defensor particular.
O ser filho de marceneiro me ensinou inclusive a não ver nesse detalhe um sinal de riqueza do cliente; antes e ao revés a nele divisar um gesto de pureza do causídico.
Tantas, deveras, foram as causas pobres que patrocinei quando advogava, em troca quase sempre de nada, ou, em certa feita, como me lembro com a boca cheia d’água, de um prato de alvas balas de coco, verba honorária em riqueza jamais superada pelo lúdico e inesquecível prazer que me proporcionou.
Ademais, onde está escrito que pobre que se preza deve procurar somente os advogados dos pobres para defendê-lo ?
Quiçá no livro grosso dos preconceitos…
Enfim, menino, tudo isso é para dizer que você merece sim a gratuidade, em razão da pobreza que, no seu caso, grita a plenos pulmões para quem quer e consegue ouvir.
Fica este seu agravo de instrumento então provido; mantida fica, agora com ares de definitiva, a antecipação da tutela recursal.
É como marceneiro voto.
PALMA BISSON
Relator Sorteado”