A juíza e o transsexual
Ela estava pronta para trabalhar. A magistratura do trabalho impunha que se vestisse com esmero. Afinal de contas, juiz tem uma imagem emblemática à preservar. Trajava saia e camisa impecáveis. Para se proteger do outonal frio curitibano, um tradicional trench coat Burberry, com seu icônico forro xadrez, cobria-lhe os ombros. Nos pés, um belo par de Christian Louboutin. O solado vermelho não deixava qualquer dúvida. A bolsa nos ombros, recentemente adquirida em Paris, era Louis Vuitton, of course.
Diante do espelho, acariciou a manga do casaco, contente com o resultado final do seu visual. Assim, muito bem vestida, sentia-se confiante e segura, pronta para enfrentar com imparcialidade os embates jurídicos na Vara do Trabalho. Lembrou-se dos tempos de faculdade, do financiamento estudantil para bancar a graduação e dos terninhos baratos comprados em lojas populares. Também vieram à sua mente as lembranças dos saltos lascados na pedra solta da calçada, resultado de tanto andar para devolver processos nos tempos de estagiária e das intermináveis horas de estudo. Finalmente, perpassou-lhe o íntimo a visão do concorridíssimo concurso que culminou na sua aprovação para o cargo de Juíza do Trabalho.
Tornou-se o orgulho e o arrimo da família. O dia da posse foi repleto de borbulhantes garrafas de espumante. Vestido e sapatos novos. O discurso na ponta da língua. De uma hora para a outra foi guindada à condição de magistrada e a sua vida mudou. Adeus preocupação com as contas a pagar no final do mês. Agora não precisa mais enfrentar a multidão apertada no coletivo. Tem um carro financiado, de última geração, para se locomover. Quando chega com o possante na casa dos seus pais, aqueles mesmos vizinhos que reclamavam das suas estripulias infantis, agora se acotovelam diante da janela para ver a Juíza chegando.
Mas não foram só comodidades que apareceram inopinadamente na sua vida. As responsabilidades, também. Hoje é senhora absoluta de uma absurda pauta de audiências para cumprir, um número sem-fim de sentenças para prolatar, uma gama infinita de despachos a emitir e guias de retirada com valores expressivos para assinar. Quanta obrigação paira sob os ombros de tão jovem mulher. Se por um lado pode-se dar ao luxo de morar num apartamento amplo e confortável no Batel Soho, por outro, a preocupação excessiva não permite que relaxe e possa dormir. Por vezes tem que lançar mão de uns remedinhos para ajudar. Relaxante muscular, ansiolítico, anti-depressivo, coisinhas desse tipo.
Munida do seu tablet Apple e a sua caneta Mont Blanc, sai de casa já atrasada. Quando chega no trabalho, uma nervosa assessora lhe aguarda para os despachos com caráter de urgência, que devem ser concluídos antes mesmo de iniciar as audiências.
Entra na sala. O barulho dos seus saltos ecoam no chão. A mesa está imaculadamente organizada, como ela gosta. Sorri com prazer. À sua frente, um copo com água mineral, coberto por um guardanapo branco. Mexe um pouco os ombros e o pescoço, na tentativa de soltar a musculatura para aliviar a tensão e se sentir mais confortável. Está extremamente preocupada com o volume e complexidade das sentenças que tem para proferir naquela semana. Mas o que está mesmo lhe tirando o sono é o fato do processo ter se tornado eletrônico. Onde já se viu o papel ter acabado e o processo existir somente no mundo virtual? Até a sua assinatura agora é digital. É extremamente difícil se afastar da ideia da trilogia juiz/papel/caneta.
Assim, envolta em divagações, a juíza inicia a sua longa e extenuante jornada, repleta de desafios. Primeiro, as audiências iniciais, apenas para uma tentativa conciliatória. Apregoam-se as partes. Ela negocia valores, estabelece condições de pagamento e cláusulas penais para o caso de inadimplemento. Tem que lidar com a intransigência do causídico do réu, que não quer pagar nem um centavo a mais e bancar a psicóloga com a reclamante emocionalmente abalada, que diz ter sido assediada sexualmente.
Chega a hora de iniciar as audiências de instrução. Tem pela frente uma infinidade de depoimentos a tomar. Ela nem se lembra mais da advogada que havia solicitado alguns minutos da sua atenção para um esclarecimento extraordinário, de tão atribulada que está.
Sem a mínima possibilidade de conciliação, ela toma o depoimento das partes. Um clima de tensão paira no ar. O réu confessa alguns pontos vitais ao deslinde da questão e a juíza, em pensamento, já começa a alinhavar a sentença que irá proferir dali a alguns dias.
É tempo de ouvir as testemunhas. Ela escuta o chamado da primeira testemunha do reclamante, de nome Roberto. Está distraída e com a cabeça abaixada, conferindo na tela do computador alguns detalhes da ata de audiência. Percebe que a testemunha já adentrou na sala e se sentou na cadeira à sua frente. Quando levanta os olhos para iniciar a oitiva, depara-se com uma belíssima mulher, elegantemente vestida para a ocasião. Fica atônita, pois pela qualificação da testemunha, tratava-se de um homem, Roberto. Imediatamente se lembra, com pesar, da advogada do reclamante que insistentemente queria lhe falar em particular. Pena que não lhe deu ouvidos. Decerto queria esclarecer a inusitada situação...
A juíza respira fundo e não se deixa vencer pela surpresa. Constrangida e meio indecisa, inicia o depoimento. Não sabe exatamente como se referir à testemunha. Será melhor usar ele ou ela, pensam rapidamente os seus neurônios. Tenta ser o mais neutra possível e decide chamá-la unicamente de “a testemunha”. Roberto, por sua vez, responde objetivamente às indagações, numa voz clara e modulada. A juíza o olha de soslaio e não deixa de reparar na feminilidade que emana de Roberto. A sua postura nem de longe faz lembrar a imagem estereotipada do transsexual. O cabelo cor de ébano, as maneiras delicadas, as unhas impecáveis, a maquiagem leve, a combinação da bolsa com o sapato e o maravilhoso anel que usa no dedo anelar, com uma pedra coral incrustada, não passam despercebidos.
Findo o depoimento, a testemunha já estava se levantando para ir embora, quando a juíza, num arroubo fashionista, discretamente lança a última e derradeira pergunta:
- Roberto, qual é a cor do seu esmalte?
Qualquer semelhança, é mera coincidência.