QUEM NUNCA ERROU... NÃO CONHECE O PODER DAS BORRACHADAS (PARTE 2)
“SE TEM UMA COISA QUE EU NÃO ADMITO É FILHO MEU SER MENTIROSO, OU NÃO SABER HONRAR COM A PALAVRA OU ATÉ MESMO ESCONDER AS COISAS QUE FEZ POR MEDO DE LEVAR A PIOR. ENTENDEU NARDINHO?”
Olá, meu nome é José Arnaldo, mas pode me chamar de Nardinho.
Acredito que você tenha conhecido minha história e como está difícil viver minha vida. Mas só para você entender meu drama, perceba minha família: meu pai (que eu e meus irmãos somos obrigados a chamar de Sr. Papai) trabalha o dia inteiro na roça cortando cana, e até parece que ele é uma usina ambulante, porque chega em casa cheirando a cachaça. Tem por sua melhor amiga a borracha que estala na gente por qualquer bobeira, mesmo que essa bobeira seja apenas... respirar; Minha mãe (Dona Mamãe) é o amor em pessoa, ela seria capaz de num dia de frio tricotar os cabelos dela só pra fazer uma blusa pra você, é trabalhadora, mas muito humilhada na casa da ricaça onde trabalha. Sem falar que quando chega em casa, é ela quem faz a comida, lava as roupas e teve uma vez que por nossa causa levou borrachadas do Sr. Papai, mas aí, é outra história; E tem meus dois irmãos: Tuninho (o mais velho) e Juninho (o do meio). Nós três temos o nome José do meu pai, mas não foi só o nome que herdamos dele, mas a vontade de bagunçar também. Sem pensar no medo de sentir a borracha estalar.
Eu não sou de reclamar (borracha estala). Acontece que faz quinze dias que por causa de um trato meu com meus irmãos, eu estou comendo arroz com feijão puro. Eu falei pra Dona Mamãe que não gosto mais de comer carne. E por causa desse trato também eu não sei mais que sabor que os doces tem.
Às vezes nós temos que fazer alguns sacrifícios... uns mais duros que os outros. Mas chega de lero-lero, eu vou explicar pra você o que aconteceu. Só não sinta pena ou raiva de mim. Eu não sou digno desses sentimentos.
Meu pai sempre diz que para ser homem precisa trabalhar, mas eu e meus irmãos somos muito novos pra isso, e ninguém paga garotos como nós. Falam que é crime de escravidão infantil. Sem contar que Dona Mamãe não deixaria, ela fala “que lugar de criança é na escola”. Mesmo assim, uma vez por semana meu pai nem pensa em crime nenhum e obriga a um de nós por vez a ir com ele pro canavial. Segunda-feira vai o Tuninho, na quarta-feira vai o Juninho e na sexta vou eu.
Criança não nasceu pra trabalhar, e muito menos pra acordar às três e meia da manhã.
Canavial não é para crianças, trabalhar não é para crianças. Mas, vai dizer isso para o meu pai. A enxada é pesada, a foice é pesada. E vai reclamar para o Sr. Papai, “Homem que é homem, quando aprende a segurar o cabo da enxada, ta pronto pra agüentar os desafios do mundo!”
Mal sabia ele que naquele dia, eu enfrentaria o maior desafio de todos: a morte.
(...)
Nardinho sabia que não poderia fugir do trabalho. Pé ante pé atrás do caminho para o canavial; o peso das suas pálpebras sonolentas só não era maior do que o peso de suas perninhas cansadas. A única visão que tinha a sua frente era a de uma montanha chamada Sr. Papai: um homem de 1’95, gordão, mas com os braços cheios de músculos, ele era um capiau que ninguém seria capaz de ir contra o que dizia. A voz de trovão fazia os três filhos “mijarem” nas calças. Sem contar a borracha que dormia atrás da porta da cozinha pronta para quem fosse contrariá-lo.
Ainda não se lembrava a hora que o sol tinha acordado, mas também não se lembrava se ele tinha dormido naquela noite.
Um dia antes, Nardinho conversara com seu melhor amigo de todos, o Claudemir, ou Calau (um menino dos cabelos-de-fogo e sardas no rosto) sobre como era amargo o gosto da cana para aqueles que trabalham com ela. Isso é fato: “a cozinheira não sente fome enquanto cozinha, o pedreiro não acha a casa bonita enquanto a constrói e eu até duvido se o padre comunga uma vez por mês como ele manda a gente fazer”, já dizia Calau. Não há melhor amigo do que Calau. Teve uma vez que Nardinho não fez a lição de casa, Calau “emprestou” a dele para o amigo não levar bronca da Dona Matilde, a professora. Outra vez, Nardinho perdeu uma aposta contra o menino João Gouveia sobre quem bebia mais copos d’agua de uma vez só, a meta de João Gouveia eram oito copos, Nardinho disse que beberia 9 por cinco reais. Perdeu a aposta, ficou sem o dinheiro que Sr. Papai lhe deu para comprar pães do lanche da tarde, e quem o ajudou? Calau. Ganhou dele os cinco reais que sua mãe dera para comprar batatas na quitanda. Depois Calau diria a sua mãe que ele perdeu durante o caminho. Calau gosta de ajudar o amigo de um metro e meio, porque a família de Calau nem sabe o que são borrachadas, acham que é uma nova banda de Axé. Sorte dele. Pior sorte foi a de ter um amigo como Nardinho que apronta tantas, e a última que aprontou pode custar a amizade dessa infância.
Chegaram Nardinho e Sr. Papai no canavial.
“BEBA UM GOLE DE CAFÉ AMARGO, ALIMENTA A MENTE E ENDURECE OS MÚSCULOS”. Café amargo não é, e nunca será remédio para nada. Mas quem não quer tomar borrachadas na bunda, prefere tomar café amargo mesmo.
“Bom dia Nardinho, não acho o meu pai por aqui, se você o vir, fale que eu já cheguei”, disse Calau, que nem parecia ter sono por estar ali. Nardinho sente pena de Calau porque o pai dele não era tão bravo e tão rígido como Sr. Papai, mas era mal falado pelos tantos bares da região que passava, não pagava, e sempre vivia escondido por medo dos credores. O coitado do Calau já levava o apelido de “sardento cabeça-de-fogo”, e de uns tempos pra cá também era conhecido como “filho do manguaça”.
“PARE DE CONVERSAR E COMEÇA A CORTAR. PARECE NEM SABER QUE A GENTE GANHA POR TANTO DE CORTE? FICA NAQUELE LADO E ME DEIXE AQUI NESSE LADO.” Cortar cana parece difícil, mas é fácil quando se tem uma boa foice de corte. É só levantar bem o braço, e pegar a dois centímetros do chão. Juntar tudo no lado e deixar que o Sr. Papai faça as amarras nos montes para contagem. É até divertido se você imaginar um guerreiro com sua espada cortando a perna dos seus inimigos. E zuuuuum, lá se foram mais dois para o chão. E Zaaaap, agora vão mais dois. Mas a imaginação de Nardinho estava além de sua cabeça.
Alguém estava deitado no meio do canavial. Um pouco assustado, mas muito curioso, Nardinho sozinho, começou a chegar mais perto de quem ali estava. O que ele sentiu depois disso foi uma mistura de medo com desespero. A única reação, foi largar a foice e pôr as mãos na boca em sinal de “ai-meu-Deus-isso-só-acontece-comigo". A dúvida de ter matado alguém pairava em sua cabeça. Seria a distração em levantar demais a foice? Existe inferno para crianças que matam os adultos? Ele será linchado em praça pública?
“Nardinho, o que foi que você fez?” Por ver o pai caído no chão, a reação de Calau até que foi a das melhores. “É melhor você correr, senão vão pensar que foi você, vá.”
E mais uma vez Calau salva a sua vida, ele era bom em contar histórias, com certeza uma que resolverá todos os problemas: o assassinato do pai de Calau, o perdão do filho sem pai e seu melhor amigo, e a ira de Sr. Papai com o poder das borrachadas.
Nardinho corria tanto que nem percebeu que seus tênis já surrados perderam-se há um quilômetro atrás. Com certeza sua feição não era das melhores. Sua “cara-de-quem-aprontou” refletia no rosto de todos os que passavam no caminho de sua corrida. Até que esbarrara em um homem de rosto conhecido.
“O que você aprontou menino?” Era o Seu Alceu da quitanda, com uma cara de desespero que parecia saber o que se passava na mente do menino. “Parece até que matou alguém!”.
“Não fui eu, eu cheguei lá e ele já estava caído... O Calau, ele estava lá também, deve ter sido ele... eu não fiz nada, eu não fiz nada.”
E lá continuou sua corrida.
Talvez se fugisse da cidade, ninguém iria perceber. Seria mais fácil então seguir os caminhos do trilho do trem, eles o levariam a outro lugar com certeza. O problema de fugir é que sempre se quer voltar. E quando se volta, os problemas voltam com você.
Alguém o pega pelo braço. “PORQUE ESTÁ FUGINDO? NÃO PRECISA TER MEDO. VOCÊ SÓ ESTAVA NO LUGAR ERRADO E NA HORA ERRADA.”
Na escuridão de seus pensamentos de olhos fechados pela abordagem do desconhecido, só sobrou dizer: “Quem é você?”
“EU SOU A SOLUÇÃO DOS SEUS PROBLEMAS.”
*Continua na parte 3 (hahahahahahahaha) Aguardem!!
S.P. 14/06/11
(Revisado pela minha amiga-irmã Célia Maria Delfino)
“SE TEM UMA COISA QUE EU NÃO ADMITO É FILHO MEU SER MENTIROSO, OU NÃO SABER HONRAR COM A PALAVRA OU ATÉ MESMO ESCONDER AS COISAS QUE FEZ POR MEDO DE LEVAR A PIOR. ENTENDEU NARDINHO?”
Olá, meu nome é José Arnaldo, mas pode me chamar de Nardinho.
Acredito que você tenha conhecido minha história e como está difícil viver minha vida. Mas só para você entender meu drama, perceba minha família: meu pai (que eu e meus irmãos somos obrigados a chamar de Sr. Papai) trabalha o dia inteiro na roça cortando cana, e até parece que ele é uma usina ambulante, porque chega em casa cheirando a cachaça. Tem por sua melhor amiga a borracha que estala na gente por qualquer bobeira, mesmo que essa bobeira seja apenas... respirar; Minha mãe (Dona Mamãe) é o amor em pessoa, ela seria capaz de num dia de frio tricotar os cabelos dela só pra fazer uma blusa pra você, é trabalhadora, mas muito humilhada na casa da ricaça onde trabalha. Sem falar que quando chega em casa, é ela quem faz a comida, lava as roupas e teve uma vez que por nossa causa levou borrachadas do Sr. Papai, mas aí, é outra história; E tem meus dois irmãos: Tuninho (o mais velho) e Juninho (o do meio). Nós três temos o nome José do meu pai, mas não foi só o nome que herdamos dele, mas a vontade de bagunçar também. Sem pensar no medo de sentir a borracha estalar.
Eu não sou de reclamar (borracha estala). Acontece que faz quinze dias que por causa de um trato meu com meus irmãos, eu estou comendo arroz com feijão puro. Eu falei pra Dona Mamãe que não gosto mais de comer carne. E por causa desse trato também eu não sei mais que sabor que os doces tem.
Às vezes nós temos que fazer alguns sacrifícios... uns mais duros que os outros. Mas chega de lero-lero, eu vou explicar pra você o que aconteceu. Só não sinta pena ou raiva de mim. Eu não sou digno desses sentimentos.
Meu pai sempre diz que para ser homem precisa trabalhar, mas eu e meus irmãos somos muito novos pra isso, e ninguém paga garotos como nós. Falam que é crime de escravidão infantil. Sem contar que Dona Mamãe não deixaria, ela fala “que lugar de criança é na escola”. Mesmo assim, uma vez por semana meu pai nem pensa em crime nenhum e obriga a um de nós por vez a ir com ele pro canavial. Segunda-feira vai o Tuninho, na quarta-feira vai o Juninho e na sexta vou eu.
Criança não nasceu pra trabalhar, e muito menos pra acordar às três e meia da manhã.
Canavial não é para crianças, trabalhar não é para crianças. Mas, vai dizer isso para o meu pai. A enxada é pesada, a foice é pesada. E vai reclamar para o Sr. Papai, “Homem que é homem, quando aprende a segurar o cabo da enxada, ta pronto pra agüentar os desafios do mundo!”
Mal sabia ele que naquele dia, eu enfrentaria o maior desafio de todos: a morte.
(...)
Nardinho sabia que não poderia fugir do trabalho. Pé ante pé atrás do caminho para o canavial; o peso das suas pálpebras sonolentas só não era maior do que o peso de suas perninhas cansadas. A única visão que tinha a sua frente era a de uma montanha chamada Sr. Papai: um homem de 1’95, gordão, mas com os braços cheios de músculos, ele era um capiau que ninguém seria capaz de ir contra o que dizia. A voz de trovão fazia os três filhos “mijarem” nas calças. Sem contar a borracha que dormia atrás da porta da cozinha pronta para quem fosse contrariá-lo.
Ainda não se lembrava a hora que o sol tinha acordado, mas também não se lembrava se ele tinha dormido naquela noite.
Um dia antes, Nardinho conversara com seu melhor amigo de todos, o Claudemir, ou Calau (um menino dos cabelos-de-fogo e sardas no rosto) sobre como era amargo o gosto da cana para aqueles que trabalham com ela. Isso é fato: “a cozinheira não sente fome enquanto cozinha, o pedreiro não acha a casa bonita enquanto a constrói e eu até duvido se o padre comunga uma vez por mês como ele manda a gente fazer”, já dizia Calau. Não há melhor amigo do que Calau. Teve uma vez que Nardinho não fez a lição de casa, Calau “emprestou” a dele para o amigo não levar bronca da Dona Matilde, a professora. Outra vez, Nardinho perdeu uma aposta contra o menino João Gouveia sobre quem bebia mais copos d’agua de uma vez só, a meta de João Gouveia eram oito copos, Nardinho disse que beberia 9 por cinco reais. Perdeu a aposta, ficou sem o dinheiro que Sr. Papai lhe deu para comprar pães do lanche da tarde, e quem o ajudou? Calau. Ganhou dele os cinco reais que sua mãe dera para comprar batatas na quitanda. Depois Calau diria a sua mãe que ele perdeu durante o caminho. Calau gosta de ajudar o amigo de um metro e meio, porque a família de Calau nem sabe o que são borrachadas, acham que é uma nova banda de Axé. Sorte dele. Pior sorte foi a de ter um amigo como Nardinho que apronta tantas, e a última que aprontou pode custar a amizade dessa infância.
Chegaram Nardinho e Sr. Papai no canavial.
“BEBA UM GOLE DE CAFÉ AMARGO, ALIMENTA A MENTE E ENDURECE OS MÚSCULOS”. Café amargo não é, e nunca será remédio para nada. Mas quem não quer tomar borrachadas na bunda, prefere tomar café amargo mesmo.
“Bom dia Nardinho, não acho o meu pai por aqui, se você o vir, fale que eu já cheguei”, disse Calau, que nem parecia ter sono por estar ali. Nardinho sente pena de Calau porque o pai dele não era tão bravo e tão rígido como Sr. Papai, mas era mal falado pelos tantos bares da região que passava, não pagava, e sempre vivia escondido por medo dos credores. O coitado do Calau já levava o apelido de “sardento cabeça-de-fogo”, e de uns tempos pra cá também era conhecido como “filho do manguaça”.
“PARE DE CONVERSAR E COMEÇA A CORTAR. PARECE NEM SABER QUE A GENTE GANHA POR TANTO DE CORTE? FICA NAQUELE LADO E ME DEIXE AQUI NESSE LADO.” Cortar cana parece difícil, mas é fácil quando se tem uma boa foice de corte. É só levantar bem o braço, e pegar a dois centímetros do chão. Juntar tudo no lado e deixar que o Sr. Papai faça as amarras nos montes para contagem. É até divertido se você imaginar um guerreiro com sua espada cortando a perna dos seus inimigos. E zuuuuum, lá se foram mais dois para o chão. E Zaaaap, agora vão mais dois. Mas a imaginação de Nardinho estava além de sua cabeça.
Alguém estava deitado no meio do canavial. Um pouco assustado, mas muito curioso, Nardinho sozinho, começou a chegar mais perto de quem ali estava. O que ele sentiu depois disso foi uma mistura de medo com desespero. A única reação, foi largar a foice e pôr as mãos na boca em sinal de “ai-meu-Deus-isso-só-acontece-comigo". A dúvida de ter matado alguém pairava em sua cabeça. Seria a distração em levantar demais a foice? Existe inferno para crianças que matam os adultos? Ele será linchado em praça pública?
“Nardinho, o que foi que você fez?” Por ver o pai caído no chão, a reação de Calau até que foi a das melhores. “É melhor você correr, senão vão pensar que foi você, vá.”
E mais uma vez Calau salva a sua vida, ele era bom em contar histórias, com certeza uma que resolverá todos os problemas: o assassinato do pai de Calau, o perdão do filho sem pai e seu melhor amigo, e a ira de Sr. Papai com o poder das borrachadas.
Nardinho corria tanto que nem percebeu que seus tênis já surrados perderam-se há um quilômetro atrás. Com certeza sua feição não era das melhores. Sua “cara-de-quem-aprontou” refletia no rosto de todos os que passavam no caminho de sua corrida. Até que esbarrara em um homem de rosto conhecido.
“O que você aprontou menino?” Era o Seu Alceu da quitanda, com uma cara de desespero que parecia saber o que se passava na mente do menino. “Parece até que matou alguém!”.
“Não fui eu, eu cheguei lá e ele já estava caído... O Calau, ele estava lá também, deve ter sido ele... eu não fiz nada, eu não fiz nada.”
E lá continuou sua corrida.
Talvez se fugisse da cidade, ninguém iria perceber. Seria mais fácil então seguir os caminhos do trilho do trem, eles o levariam a outro lugar com certeza. O problema de fugir é que sempre se quer voltar. E quando se volta, os problemas voltam com você.
Alguém o pega pelo braço. “PORQUE ESTÁ FUGINDO? NÃO PRECISA TER MEDO. VOCÊ SÓ ESTAVA NO LUGAR ERRADO E NA HORA ERRADA.”
Na escuridão de seus pensamentos de olhos fechados pela abordagem do desconhecido, só sobrou dizer: “Quem é você?”
“EU SOU A SOLUÇÃO DOS SEUS PROBLEMAS.”
*Continua na parte 3 (hahahahahahahaha) Aguardem!!
S.P. 14/06/11
(Revisado pela minha amiga-irmã Célia Maria Delfino)