O Caso da Testemunha Mentirosa

I

Sempre acreditei que os dons da onisciência e da onipresença fossem atributos exclusivos dos deuses e privilégio de uns poucos mortais. Afinal, a onisciência é a capacidade de saber tudo o que se passa em todos os lugares e ao mesmo tempo; e a onipresença se refere à possibilidade de um ser se fazer presente em um ponto qualquer do universo num momento específico.

Eu supunha então que apenas os deuses e os escritores de novelas românticas lograssem conhecer tudo o que se passa tanto no ambiente quanto no interior das personagens que eles mesmos criaram.

No final dessa história, entretanto, haveremos de concluir que em ocasiões especiais outros seres foram igualmente prendados com essas capacidades. Veremos aqui a história de uma testemunha completamente ciente, onisciente e onipresente à respeito dos fatos relativos a determinado processo trabalhista e à relação empregatícia havida entre um reclamado e um reclamante.

É de se supor, porém, que aquela testemunha houvera sido minuciosamente instruída pela parte que a trouxera para depor - à despeito da pesada advertência que lhe fora feita pelo juiz antes de dar início ao depoimento e do próprio compromisso assumido por esta de não mentir para o Juízo – e acabara se tornando a campeã das inverdades na Justiça do Trabalho.

Vamos então tentar presenciar de uma forma igualmente “onipresente” e “onisciente” tudo o que aconteceu e como terminou aquela audiência trabalhista.

II

No momento em que essa história se inicia, o juiz já havia começado o interrogatório da testemunha. Endereçara-lhe uma longa série de perguntas às quais o sujeito viera respondendo sempre com a maior presteza e clarividência do mundo.

Mas fora mesmo tanta a presteza e tamanha a clarividência que num dado momento o juiz se pusera bastante pensativo. O fato é que repentinamente ressurgira em sua memória um conhecido bordão utilizado por um antigo apresentador de programa de calouros. O homem se chamava J. Silvestre e o bordão era repetido todas as vezes que o candidato respondia corretamente ao que lhe houvera sido perguntado:

- “Absolutamente certo”, dizia J. Silvestre com um extenso sorriso no rosto.

Aquele programa de televisão era apresentado pela antiga TV Tupi do Rio de Janeiro numa época em que a televisão brasileira começava a dar os seus primeiros passos, entre as décadas de cinquenta e sessenta. Chamava-se “O Céu é o Limite” e era um show de perguntas e respostas sobre assuntos e temas previamente determinados, atraindo a atenção e o ibope de uma boa parcela da população.

III

No entanto, que logo após ter-lhe renascido na memória aquela velha lembrança, o meritíssimo propôs uma nova pergunta para a testemunha. Esta respondeu uma vez mais com a sua habitual sabedoria e confiança. Em seguida o juiz argüiu outra e outra e mais outra e a cada nova pergunta formulada a testemunha parecia responder com uma maior eficiência e conhecimento de causa.

- “Absolutamente certo”, soprara o juiz mais uma vez...

Porém, não lhe parecia ser provável que a testemunha pudesse saber tanto a respeito daquele processo. Para que isso se fizesse possível ela teria que ou tê-lo estudado profundamente ou ter participado da maioria dos atos e fatos que envolviam a relação daquele empregador com o empregado.

Então o juiz teve uma idéia. Voltou a folhear os autos e se dirigiu mais uma vez ao depoente:

- O senhor conhece um funcionário de nome Alfred de Musset - perguntou-lhe, citando o nome de um escritor francês que estivera lendo recentemente em suas poucas horas vagas.

- Ora, senhor juiz, claro que sim. O Alfredinho é muito meu amigo. Trabalha na empresa há bastante tempo. Ele é...

- E o Ricardo Gomes de Almeida?! Você poderia me dizer qual é atualmente a principal atividade desse funcionário na reclamada, retoma o juiz imediatamente a sua sabatina utilizando-se agora do nome do representante classista dos empregadores. O classista que se achava confortavelmente sentado próximo da testemunha, olhou desconcertado e surpreso para o juiz. Pensou em se levantar e intervir, mas o olhar do juiz o manteve quieto e em silêncio. O homem não estava entendendo patavina daquilo tudo.

- Ora, senhor juiz, claro que sim, prosseguiu a testemunha. Ou eu muito me engano ou este senhor Ricardo Gomes é um antigo vendedor. E, aliás, vendedor dos bons, dos melhores mesmo! Só o senhor vendo...

Nesse momento o advogado que houvera trazido a testemunha começara a compreender aonde o juiz pretendia chegar com aquela sabatina composta por perguntas aparentemente sem pé nem cabeça.

Ergueu uma das mãos e solicitou a palavra. O meritíssimo ordenou, entretanto, que ele se mantivesse quieto e aguardasse até que ele próprio, o juiz, terminasse o seu interrogatório. Diante da insistência do advogado, disse-lhe ainda que caso ele quisesse registrar os seus protestos em ata, poderia fazê-lo ao final do interrogatório.

Finalmente – ainda não completamente satisfeito com o resultado obtido até aquele momento - o juiz propõe à testemunha uma última questão usando o seu próprio nome, isto é, o nome do próprio juiz que estava presidindo a audiência:

- E o companheiro Mateus de Almeida e Silva? O senhor tem alguma idéia acerca do atual paradeiro dele?

- Vê lá, senhor juiz, se eu não iria saber aonde o mestre Mateus se esconde! Claro que sei: é lá para as bandas de...

O meritíssimo nem esperou que o sujeito completasse a frase. Pediu-lhe que se levantasse de imediato e aguardasse do lado de fora da sala até ser chamado para assinar a ata.

Assim que a testemunha se retirou, o juiz se dirigiu ao representante que a havia trazido e comentou com o cenho carrancudo e fechado que jamais havia visto em toda a sua carreira na magistratura uma testemunha tão mentirosa e cheia de lorotas quanto aquela...

- E olhe o senhor que a minha atividade judicante já se faz bastante longa. Trago nessas mangas de camisa muitos anos de magistratura...

O procurador ainda tentou argumentar e se desculpar de toda aquela trapalhada, mas pouco havia de fato a fazer ou a dizer a respeito.

Para terminar, vale registrar como se findou a audiência: minutos depois da oitiva daquela testemunha tagarela e sabichona, as partes compuseram um rápido e belo acordo. Na verdade nós nunca havíamos visto uma conciliação sair tão ligeira do forno quanto aquela.

Mas o fato - meus amigos – o fato é que depois de tudo aquilo talvez o forno estivesse bem quente mesmo. E bota quente nisso, bota quente nisso!