Buenos Aires e a calcinha preta

Elas haviam atravessado o Deserto da Patagônia, numa viagem de 1.600 quilômetros, que durou todo o dia e a noite inteira. As duas mochileiras, amigas de longa data, estavam viajando pela América do Sul. Iam de um lugar ao outro, ouvindo histórias, fotografando pessoas e paisagens, aventurando-se em ônibus de linha e se misturando com a população local. Adoravam ver as cores da vida, por trás de suas lentes fotográficas. A curiosidade as levava a experimentar os sabores e os cheiros da cultura estrangeira. Assim preferiam se deslocar, para melhor sentir a vibração das pequenas comunidades montanhosas.

Após se embevecerem com as belas paisagens e a gente hospitaleira do Chile, realizaram a travessia dos lagos andinos e cruzaram a Cordilheira dos Andes, assim como fizeram na antiguidade os jesuítas, os desbravadores espanhóis e os mapuches. Ingressaram na Argentina, navegando pelo maravilhoso lago Nahuel Huapi, de águas límpidas e geladas, circundado por uma grandiosa cadeia de montanhas com seus cumes recobertos pela neve eterna. Passaram vários dias explorando as belezas naturais de Bariloche.

Já no rumo de casa, numa ensolarada manhã de verão, tomaram assento num ônibus que saía de Bariloche com destino à Buenos Aires. Na saída da cidade, a estrada margeia o lago. Não há vento. Suas águas estão calmas, resplandecendo como um espelho. O ônibus se afasta rapidamente. As amigas, de mãos dadas, olham para trás, despedindo-se daquela beleza estonteante. Deparam-se com a vista das montanhas e o lago aos seus pés. A visão arrebatadora inunda de emoção o coração das andarilhas, que suspiram e, disfarçadamente, enxugam as lágrimas que brotaram inopinadamente.

Acomodam-se em seus bancos. À sua frente, apenas a estrada, numa interminável linha reta que corta a planície ressequida. O Deserto da Patagônia começa nos limites do Lago Nahuel Huapi. É uma imensidão solitária de pequenos declives, com vegetação rasteira esturricada pelo sol e pelos ventos. No horizonte, a campina ondulante, com suas matizes ocre e dourada, encontra o céu azul isento de nuvens, num belo espetáculo de contrastes.

Água há muito pouco por essas bandas. Na beira de uma mísera lagoa, elas avistam o gado magro pastando. Percebem algumas porteiras de estâncias, mas as extensões de terra são descomunais e não se nota presença humana.

No lado esquerdo da estrada, algo chama a atenção das empoeiradas viajantes. Aponta, ao longe, uma superfície branca que elas acreditam ser outra lagoa. Qual é a surpresa das duas quando o ônibus se aproxima e elas constatam que se trata de um depósito de sal, um pequeno salar, que denuncia o quão seco e inóspito é o lugar.

A primeira parada para descanso e alimentação foi em Piedra del Aguilla. Um amontoado de casas, um posto de gasolina e um hospital resumem o lugar. Local muito pitoresco, as ruas de terra batida lembram as cidades do faroeste americano. O povoado serve de posto de abastecimento para aqueles que se aventuram a percorrer por terra o Deserto da Patagônia, gente da estrada. E aventureiros não faltaram. Um casal ajeitava a bagagem na sua moto possante. O rapaz tinha ares de galã de novela mexicana. Partiu levantando poeira, com a namorada empoleirada na sua garupa, arrancando suspiros da platéia feminina. As duas amigas se entreolharam, imaginando a delícia que é sentir o vento quente do deserto na pele. Perto da bomba de gasolina estava um 4x4, com quatro rapazes que viajavam no maior gipsy style. Reggae tocando, bandana no pescoço, marijuana, jeans surrados e a alegria descompromissada dos vinte e poucos anos traduziam o estado de espírito dos meninos crescidos.

A viagem prosseguiu e o ritmo cadenciado com que o ônibus avançava propiciava a introspecção. Assim, cada uma mergulhou no seu próprio íntimo, indo parar em pontos devolutos da alma, aqueles em que é preciso tempo para chegar lá. "É, viagem serve para isso, para nos encontrarmos com a nossa própria essência e nos maravilharmos", foi o que pensou uma delas.

Envoltas em seus próprios pensamentos, chegaram em Neuquen, sob uma temperatura de quarenta graus. Impossível arriscar-se a comer naqueles confins de calor abrasador. Decidiram almoçar apenas um pacote de batatas fritas e um sorvete, nada que comprometesse seus intestinos, porque uma infecção intestinal com diarréia nessas circunstâncias, com centenas de quilômetros ainda por percorrer, seria terrível.

Extensas plantações de frutas começaram a surgir. Pêra, ameixa e pêssego. As árvores estavam plantadas milimetricamente, em fileiras a perder de vista. As amigas perguntaram-se como poderia uma árvore frutífera sobreviver naquela terra seca e gretada. A mão do homem, porém, cavou largos canais de irrigação que hidratavam as plantinhas sedentas. Não eram só as plantas que se beneficiavam com os canais. Como num balneário improvisado, crianças e caminhoneiros com suas famílias banhavam-se nas suas águas, em busca de frescor, numa tentativa de apaziguar o torpor produzido pelo verão causticante.

O céu foi se enchendo de tons avermelhados e uma luz dourada veio trazendo o entardecer. Na parada em Choele Choel, o termômetro do ônibus marcava quarenta e um graus. Que calor!

A noite teria transcorrido sem incidentes, não fosse o ar-condicionado do ônibus ter pifado. Enquanto o veículo estava em movimento, a fresca brisa que entrava pela ventarola embalava o sono dos passageiros. Entretanto, qualquer parada do ônibus fazia todo o mundo derreter.

A madrugada as recebeu já nas proximidades de Buenos Aires, terra da parrilla, do tango e de Maradona, of course. Pararam para o desjejum num posto de gasolina na beira da estrada. Antes de comer alguma coisa, as amigas decidiram ir ao banõ para uma higiene básica. O local era de arrepiar, paredes recobertas com jargões, cheiro de desinfetante barato e barulho de água gotejando. Mas não foi isso o que mais surpreendeu. Estava lá uma imensa diva argentina, beirando os seus setenta anos. Parecia-se com aquelas imagens de Botero, o pintor colombiano. Estava praticamente nua, numa incompreensível exposição narcisista. A visão estarrecedora imediatamente tirou as amigas da plácida sonolência em que se encontravam, obrigando-as a respirar fundo para conter as suas expressões de espanto e vontade de rir. O único traje era uma minúscula calcinha preta, fio-dental, que estava praticamente subjugada pelas nádegas avantajadas da senhora. Somente uma nesga de tecido preto a gritar desesperadamente: Help.

Deborah Koliski Vons
Enviado por Deborah Koliski Vons em 02/06/2011
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