A "marvada"

Sujeitinho esperto mesmo era o "Meio-quilo", aquele não perdia nada, nem mesmo o pescoço da galinha assada no almoço de domingo. O "figura" era conhecido na pacata cidade interiorana do Paraná e em todos os barezinhos dela. Botequim era quase a sua segunda casa.

Magrelo, zarolho, barba por fazer e aquele aroma típico da boa e "marvada" cachaça. Era filho de um famoso pintor da cidade, e assim como ele, apreciador da "caninha".

Não podia dar em outra, tal pai, tal filho. Era coisa de família aquele vício, que Meio-quilo dizia já fazer parte das quatro gerações anteriores: o pai, o avô, o bisavô e o tataravô. E o malandro falava com orgulho pra quem quisesse ouvir e até pra quem não quisesse:

- Eu bebo sim, com muito orgulho. Bebo pelo meu falecido pai, pelo vôzinho Toninho, pelo meu "bisa" Carlotão e pelo "tata querido" Xiboca.

De cabeça erguida e goela rígida, Meio-quilo filosofava suas teorias de beberrão e levava na lábia com seus papos-armadilha até o sujeito mais bem aculturado que se possa existir. O malandro era bom de conversa...

Mas, vamos ao papo, que é o que mais interessa...

Diz um velhinho daquela pacata cidade interiorana, e muito camarada de Meio-quilo, que certo dia o sujeitinho foi na casa de Dona Rosinha, uma bordadeira de mão cheia da cidade. O rapaz bateu palma seis vezes e nada, então resolveu gritar:

- Ô Dona Rosinha, abra a porta para um bom sujeito que vem lhe visitar! Ô de caaaaaasa...

A senhorinha só abriu a cortina de renda da janela e já percebeu do que se tratava. Fechou a cortina e voltou para aprontar o almoço na cozinha. Mas Meio-quilo era, como um legítimo bêbado, muito chato e insistente e pôs-se a berrar na rua novamente:

- Ô Dona Rosinha, seu bom marido Tião Marceneiro já teria aberto a porta pra mim faz tempo. Trate de vir logo aqui mulher, atender um bom amigo que bate à porta...

A velhinha se enrascou e em sua caixola pensou: "eita sujeito folgado...agora ele vai ouvir umas boas...". E foi até o portão.

- Que é que você quer "bicho chato", não consegue ficar um minuto sem encher o saco de alguém?

- Que isso minha comadre, não lembra dos bons amigos, não? Só vim aqui pra lhe dar a chance de praticar uma boa ação - e abriu aquele sorriso bonito e amarelado que era característica sua.

- Fale logo que é que você quer...

- Pois é comadre, sabe...lá em casa as crianças tão magrinhas feito eu, não tem um grãozinho de arroz pra colocar no prato e nem um feijão, nem farinha, nem franguinho...a comadre poderia dar uma "forcinha" pro almoço dos "pimpolhos".

- Ah! Mas não dou mesmo. Você fica gastando dinheiro só com essas bebidas todo dia. Pelas crianças eu ajudaria, mas você não me engana mais não...

- Ô comadre, não fala assim não que ofende. Eu lhe juro, é comida que eu peço, não é dinheiro pra beber não, já parei com isso...estou fazendo um regime de bebida, agora só tomo água.

- Água, sei a água que você toma...a ardente, só se for essa - ela disse.

O caboclo ficou ali mais uns dez minutos atazanando a Dona Rosinha e mais uma vez a boa velhinha se sensibilizara com a lábia sabida do Meio-quilo. Da cozinha, ela voltou com um frango inteirinho que tinha acabado de assar. Enrolou o assado no alumínio e com dó da fome das crianças, entregou o "rango" pro sujeitinho.

- Agradecido. Que Deus lhe pague e lhe dê em dobro! - e como que profetizando algo, Meio-quilo lhe disse: - Pode ter certeza comadre, o que a senhora fez hoje por mim, alguém fará pela senhora um dia...e que nunca lhe falte nada na mesa, nem mesmo um frango!

Rosinha até se sensibilizou com as palavras dele, e pensou que talvez não fosse tão mal sujeito assim. Deu-lhe um sorriso e disse "Vá com Deus". Voltou pensativa para dentro de casa, pensando no que faria para o almoço, já que o frango prontinho, assado, tinha tomado outros rumos a essa hora. Foi até o congelador da velha geladeira vermelha e pegou um bife de segunda bem batido e começou a cortá-lo na tábua.

O sujeitinho saiu faceiro da vida com o frango debaixo do braço, esquentando o "sovaco". Havia enganado mais uma pessoa com aquela conhecida e esperta conversa. Andava rápido na direção do bar, afinal, a cachaça o esperava com muita saudade.

Dobrou a esquina que dava para a rua Aristor Neves, a famosa rua do bar, quando deu de encontro com Tião Marceneiro, e este, vinha andando de cabeça baixa e ligeiro para chegar em casa e almoçar.

- Ei, Tião. Aonde vai com tanta pressa compadre? Parece que vai tirar o pai da forca!

- Vou pra casa, Meio-quilo. Não vejo a hora de comer o rango...a fome tá me matando hoje!

- Ah! Não seja por isso...leve esse belo franguinho que comprei na padaria do Maneco para você e sua família. É um presente de um bom amigo!

- Que isso Meio-quilo. Não posso aceitar de jeito nenhum. Rosinha deve estar com a mesa pronta já...não se incomode não.

Meio-quilo, na sua boa e sensata conversa, insistiu no causo e colocou o frango nos braços do compadre:

- Eu insisto compadre, leve o frango. Não estou cobrando nada não, é um presente...

- Ô Meio-quilo, não precisa não!

Mas o caboclo insistia e ao mesmo tempo frisava que era um presente de compadre para compadre. Tião meio sem jeito em aceitar, resolveu pegar. Mas fez questão de dar "deizinho" na mão de Meio-quilo, e este fingia não querer aceitar o dinheiro. Mas depois de recusar bastante e fingir que nada queria, pegou o dinheiro e com a maior cara de pau disse:

- Eita compadre, você é um orgulhoso mesmo. Eu não queria esses "deizinho". Dei o bichano de coração pra você e sua bondosa Dona Rosinha (e deu aquele sorrisinho amarelado de sempre).

Tião foi todo feliz e emocionado com a atitude do sujeito, pensando consigo mesmo..."que caboclo bom esse, tira o que não tem pra dar pros outros". E foi correndo para casa, pois o almoço da Rosinha lhe esperava quentinho na mesa.

- Rosinha, meu amor...cheguei em casa pra "bater aquele rango". E olhe o que trouxe para o almoço...

Rosinha olhou meio ressabiada para "aquela coisa" na mão do marido e disse:

- Amorzinho, porque você pegou de volta o frango que dei para o pobre Meio-quilo? As crianças dele estão passando fome!

- Que frango? Esse? - apontando para o assado.

- É, esse mesmo...acabei de embalar e dei nas mãos do sujeito.

- Ué, Rosinha. Mas o Meio-quilo nem filho tem!

- Como não tem filho, Tião? Acabou de me falar que as crianças não tem nem o que comer em casa...

- Ele não tem filho Rosinha, tenho certeza mulher. Meio-quilo não tem nenhum parente aqui e nem em outra cidade, nem em outro país. O caboclo é sozinho desde que o pai morreu, faz uns dez anos!

- Ah! Bicho safado. Aquele zarolho me disse tudo aquilo...e era tudo mentira. Eu mato aquele magricelo safado. Ah! Se mato...

Entrou no bar o famoso Meio-quilo com os "deizinho" bem guardado no bolso e logo os camaradas lhe cumprimentaram. Os beberrões admiravam-no...era praticamente "o mestre da cachaça" no local. E ele sabia diferenciar o gosto de cada uma delas. Logo chegou no balcãozinho de madeira velha e moída por cupins e bateu a palma da mão, exclamando:

- Aí Higino, me vê aquela caninha de Minas...aquela da boa! E pode encher o copo, porque hoje eu vou tomar todas...

Pegou o copo cheio, jogou um pouquinho no chão em respeito ao Santo, e começou o discurso pros camaradas no bar:

- Amigos, hoje estou aqui para homenagear alguém muito especial: meu falecido e estimado pai. Nunca me esqueço que quando ainda menino, ele me disse pra nunca deixar que os outros passassem por cima de mim e acabassem com a minha raça. E é por isso que hoje estou aqui, camaradas. Hoje eu vim me vingar da morte de meu velho, que morreu de cirrose. E pensar que foi tudo por causa da "mardita".

Os camaradas olhavam atentos as gesticulações do Meio-quilo e com os ouvidos bem abertos, prestavam atenção em cada palavra que o mestre dizia. E o sujeito continuou:

- É hoje, meus amigos...é hoje! Hoje eu vou vingar com muita honra a morte do meu pai. Que saudades tenho daquele exemplo de homem (e chegou a fingir secar as lágrimas do rosto, emocionado com as lembranças de seu velho).

Dái em diante seguiu um discurso longo de mais ou menos 10 minutos...e quase findando as palavras, já se via todos os camaradas emocionados também, derramando lágrimas feito bebês chorões longe da mãe.

- É agora, companheiros...é agora!

Meio-quilo ergueu o copo na altura dos olhos e encarou a caninha transparente durante alguns segundos e lhe falou:

- Você acabou com a vida do homem que mais amava na vida, "sua caninha marvada" e agora chegou a sua vez...agora eu vou acabar com você!!!

Pegou embaixo do copinho e virou a cachaça goela abaixo e tomou tudo num gole só...e sentiu o prazer costumeiro da garganta queimando feito caboclo com dor de barriga.

...

Diz o velhinho contador do causo, que naquele dia, Meio-quilo vingou a morte do velho mais dezessete vezes, e depois disso sumiu das cercanias. Alguns dizem que o sujeitinho esperto, ligeiro, magrelo, zarolho e malandro foi pras Minas Gerais ser caseiro num engenho de cana-de-açúcar e que até hoje vinga a morte do falecido e estimado pai.

Paulo Hirami
Enviado por Paulo Hirami em 28/05/2011
Reeditado em 22/11/2011
Código do texto: T2998228
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