Um grande temporal no rio Negro

Um espetáculo de encher os olhos. Meu pai imediatamente pede que eu pegue a tarrafa, preciso apenas alguns segundos para pega-la e traze-la até a canoa, empurrei o pequeno casco, saltei para o banco de traz e lá fomos nós em direção as branquinhas (peixe de cardume) que saltavam em ritmo frenético.

Algumas remadas e um sinal vindo da proa para que eu para de remar, observo meu pai ficar em pé, no pulso esquerdo ele prende a corda principal da tarrafa, com a mão direita dobra-a o pano no meio, uma ponta da rede morde com o canto da boca, com a mão esquerda livre afasta um pouco da chumbada, faz um giro de 90º com o tronco, sem mover as pernas do lugar arremessa a tarrafa no ar formando um grande circulo.

Um golpe Sem chances para as branquinhas que ali se acumulavam. Ele da um grito seguido de uma gargalhada em comemoração por ter arremessado com perfeição.

Espera alguns segundos para que a tarrafa sente no fundo, dai começa a recolhê-la, Olha para mim e diz: não deixa a canoa virar... Obedeço sem pestanejar.

Quando começa a retirar a tarrafa da água vi que ela estava cheia de peixes, sem minha ajuda ele foi desengatando principalmente os maiores. Quando viu que já é o suficiente para nossa caldeirada, botou a tarrafa na água e soltou o restante dos peixes.

Remamos de volta para o batelão (barco), não entendi direito a atitude de soltar aquele monte de peixes. Ele parece que percebendo disse:

“Rapaz essas branquinhas são os peixes que apodrecem mais rápido quando retirados da água, e como nós não trouxemos gelo o jeito e solta-las...”.

Então ficou bem entendida para mim aquela atitude. A regra de quem vive da natureza é “mesmo que você tenha muito não desperdice”.

Calculei comigo! “o peixe que levaríamos para casa seria pego durante a noite nas malhadeiras e na zagaia (espécie de arpão)”.

De volta ao barco fui cumprir o meu trabalho: limpar os peixes!

Meu pai vai à cozinha do barco pega uma panela, corta algumas verduras, coloca um pouco de água, um pouco de azeite e deixa refogar, em seguida passa por mim e diz: .

__ toma conta do caldo.

Fiz um gesto de sim com a cabeça, ele entrou novamente na canoa, acompanhado dessa vez do seu João Pinto e do tio Marciano que já o esperavam, iria levá-los para dar umas voltas na mata atrás de caça. Ele aproveitará para por as malhadeiras no lago bem a nossa frente. Seu Nelson e o seu Betinho saíram na frente em outro casco (canoa).

Aqui da popa do barco grande posso vê-los descer das canoas e puxarem pelos bancos fazendo a transposição delas do rio para o lago que ta sangrando. Enquanto isso a pequena corredeira que é a sangria do

Grande lago continua a ser desafiada pelo cardume de branquinhas, agora bem mais fraco.

Em pouco tempo as duas canoas e um gavião pescador são as únicas coisas que se movem lentamente sobre aquele espelho de água gigantesco.

O tempo passa, concluí minha missão: limpei, tiquei, salguei e passei limão nos peixes, deixando apenas um fora desse ritual. O dito eu usarei como isca mais tarde.

Peguei todos os restos e vísceras, juntei com as duas mãos e joguei o mais longe que pude. Uns quatro metros de distancia... Isso seria o atrativo.

Colhi água, dei uma boa lavada na popa onde será o meu “QG”. Fui até o interior da embarcação, peguei minhas tralhas de pesca, dei uma passada na cozinha pude ver a água com as verduras que estava em ebulição, assim mesmo ainda não estava na hora de colocar os peixes para ferver, o segredo de uma boa caldeirada é colocar o peixe só depois que a verdura estiver bem cozida, senão o peixe amolece demais.

Na proa sentei em um banquinho para começar a pescar.

Estamos no inicio do verão, o céu continua nublado, corre uma brisa fria, não tem banzeiro, o rio se mantém calmo, isso é bom “assim vou poder ver a linha correr quando o peixe morder a isca.”.

Retirei de dentro de um saco alguns anzóis, um carretel de linha nylon numero sessenta e junto um pedaço de arame, será usado como encastroamento (proteção) contra as mandíbulas afiadas das piranhas pretas do rio negro.

No momento que estou montando meu artefato, olho para cima e vejo um bando de gaivotas de água doce elas acabaram de chegar são barulhentas dão longos pios, acredito que estão dizendo: “comida a vista”.

O banquete começa bem na minha frente... Mergulham como flechas vivas, ao retornarem trazem consigo a presa e vão engolindo em pleno vôo.

O grupo se revezava entre os dois extremos da pequena corredeira, um casal de ariramba-açu (Martin pescador) sentados numa imbaúba assiste tudo encabulados.

Parece que as gaivotas são velhas conhecedoras daquele pedaço, ou vinham seguindo o cardume, e decidiram que ali era o local ideal para atacar.

“Essa natureza é mesmo perfeita...”

Deixando de lado os pássaros, Voltei a atenção para minha linha, na qual fisgo um pedaço do rabo de branquinha e atiro longe... Afunda rapidamente formando um seio, com o braço esticado fico aguardando o momento certo... Sinto pequenas beliscadas, nada serio, aguardo. Uma, duas, três, na quarta vez, a linha dispara! Dou um puxão!

A linha se estica dou um sopapo ela corta meu dedo, mas o peixe ta fisgado, seguro com a outra mão, ele corre para um lado e outro, vou recolhendo sem afrouxar, o bicho se mostra um pouco e mergulha, já vi do que se trata é uma enorme piranha preta. Puxo rápido ate tira-la da água, quando solto ela na popa a fera se debater em ritmo acelerado.

Antes que ela caía de volta na água pego o amansa onça, um porrete de maçaramduba que fica bem na entrada da porta, desci a maçaranduba na cabeça da danada, foram três cipoadas bem dadas e ela ficou quietinha.

Assim que tive certeza que a felá da mãe tava morta retirei o anjol e coloquei-a dentro de um saco. Trata-se de um belo espécime, uns quatro quilos, parece um "ruelo". A diferença esta nos olhos são muito avermelhados e a mandíbula que parecem navalhas afiadas.

Fiquei admirando um pouco através da boca do saco... È um troféu e tanto, depois de alguns instantes de admiração joguei a linha na água novamente.

Sem sucesso, só consegui tirar da água duas piranhas caju, essas são bem menores, mas nem por isso menos perigosa.

Devido ao fato de só andarem em cardumes as cajus são capazes de devorar um animal grande em poucos minutos, deixando apenas os ossos. Essa espécie Infesta os Rios Negro e Solimões e também o pantanal.

O sol se põe rápido, o cardume que antes saltava nas corredeiras cessou. As gaivotas foram embora procurar um lugar seguro para dormir, a Nambu relógio começou o piar tristonho lá dentro da floresta, ela da o anuncio que a noite chegou. Bandos de pequenos pássaros começam a chegar na ingarãna as margens do grande lago, é uma barulheira danada... Aos poucos eles vão se acalmando.

Ta na hora de recolher a linha dou um nó na boca do saco com as piranhas, coloco em cima do toldo pra pegar o frescor da noite.

Subitamente um tiro ecoou lá para as bandas do final do lago, alguém dos companheiros atirou. Fiquei ansioso pra saber o que aconteceu. Mas não tinha outro jeito senão esperar... Peguei a lata de colher água na popa e comecei a tomar banho bem à vontade, do jeito que vim ao mundo, enquanto isso fico contemplando a floresta submersa, os pés de tucumãs estão carregados de frutas ainda verdes, uma grande e alta sumaúma parece uma arvore de natal gigante cheia de ninhos de japiim um pássaro que gosta de imitar os outros.

Após o banho me dirigi ao fogão, coloquei o peixe na caldeirada. O pessoal quando voltar vai encontrar a comida fresquinha.

Sentei na minha rede e fiquei admirando o lusco fusco da aurora dando lugar à noite... Batidas de remos na água, tem gente chegando... Levanto-me vou recebê-los, na popa, passo pela cozinha e desligo o fogo do caldo, na popa estico-me todo pra enxergar dentro da canoa; tento enxergar o que eles haviam abatido.

Para minha surpresa não tem caça nenhuma no porão da canoa, a não ser um tucunaré que é um paidégua, deve ter caído em uma das malhadeiras.

Ajudo a amortecer a encostada da canoa espero a segunda que vem logo atrás, olhei, não vi nada, estava vazia...

Todos desembarcaram, fiquei matutando será que eles erraram o tiro! Como pode? Todos ali, menos eu é claro são exímios atiradores. Fiquei curioso, mais com receio de perguntar.

Só voltaram seu Betinho, seu Nelson tio Marciano, e meu pai. Seu João Pinto deve ter ficado numa “espera”...

Dentro do barco eles começaram a conversar como será a noite: não terá lua, escuridão total será ótima para a faxiada (pesca com lanterna e zagaia), enquanto isso começam a jantar.

Resolvi pegar o tucunaré, para pô-lo junto no saco com as piranhas.

Ele não era qualquer um, era um “Borboleta” de uns seis kilos aproximadamente, pude ver o seu lado escondido, na altura do dorso depois da guerra um buraco maior com outros pequenos em volta, só então entendi em quem tinha sido o tiro...

Após colocá-lo no saco rumei até o salão, pude acompanhar a conversa que fluía sobre aventuras passadas nas cabeceiras do rio Purus lá pras bandas do Acre, uma região muito rica.

Sentei na minha rede com o prato na mão, fiquei observando a conversa que às vezes era interrompida por gargalhadas do meu pai, contando sobre os “cabocos pau-Mari” nativos do Purus.

Segundo ele no alto Purus tem tanta “carapanã” (pernilongo) que os cabocos passam o tempo todo dentro d’água, apenas com nariz e olhos de fora... Seu Nelson era o único que se mantinha ali esboçando um sorriso bem reservado, enquanto seu Betinho ficava vermelho de tanto rir, sendo imitado pelo tio marciano.

Ninguém agüentou foi quando o papai contou um episodio que aconteceu com ele na época da construção do aeroporto de Rio Branco do Acre, ele disse que vinha na estrada em uma caçamba ai parou para dar carona a um caboco que não era acostumado com carros, o pobre homem não querendo dar trabalho entrou rapidinho se espremendo pela janela da caçamba, não deu nem tempo do meu pai abrir a porta.

”O caboclo amazonense tem esse bom humor de contar causos engraçados de sua própria gente”

Após mais alguns causos engraçados as horas se passam, à digestão feita, é hora de começar a caçada noturna; pulei da rede na esperança de ser convidado a acompanhá-los, mas fui logo sendo desestimulado pelo mau pai que disse: “Filho você fica aqui tomando conta do barco”.

Um pouco contrariado, mas sem esboçar qualquer reação contraria fiz sinal de sim com a cabeça.

Na popa ajudei a desamarrar as canoas colocando dentro os remos e zagaias, era a hora de sair para fachear, contudo não havia outro jeito, senão ficar observando eles saírem com suas lanternas na noite escura como breu sob um céu muito estrelado, no mais absoluto silêncio a não ser pelos bacurau (pássaro noturno) que voavam em silencio engolindo insetos...

Fiquei sozinho, sem lanterna, apenas com a luz interna do barco: uma lâmpada de 12 volts bem no meio do salão perto da proa.

Voltei para minha rede, estava decidido a dormir, afinal não tinha muitas opções.

Para o meu conforto começou soprar um vento fraco, ele criava banzeiros (ondas) suficientes para balançar levemente o barco, com isso acabei mesmo foi pegando no sono...

Novamente o tempo passou, ate que despertei ouvindo o som de bater de asas; era um morcego que passava de um lado para o outro, através dos janelões do barco, aquilo me tirou o sono, afinal podia ser morcego hematófago, na Amazônia existem algumas espécies, o meu pai já foi atacado certa vez, situação essa em que ele perdeu muito sangue, a ponto de sentir fraqueza ao amanhecer, tem mais, pode transmitir uma zoonose.

Levantei-me fui até a cozinha acendi o fogão e botei um resto de café para aquecer, então escutei um barulho esquisito vindo lá de fora: foi algo pavoroso, parecia um compressor de ar que de repente por décimos de segundos tem sua válvula de pressão aliviada, deixando o ar escapar.

Repete-se com espaço de poucos minutos, nessa escuridão toda imagino que seja um monstro aquático que veio das profundezas do rio negro e esta procurando um jeito de me pegar... Minha imaginação vai muito longe na hora de calcular o tamanho desse animal.

Procuro me controlar, afinal de contas o som não se aproximou do barco, até ai eu estou seguro...

Aguço bem os ouvidos para tentar identificar do que se trata, mais a minha imaginação só traz figuras bizarras. Caminhei agora com todo cuidado para não fazer barulho nas tábuas soltas do assoalho estou com medo de atrair o bicho, vou até o salão pegar um terçado (facão), com ele na mão me sento num canto onde tenho a visão total dos dois janelões laterais e da proa do barco, fiquei ali rezando para que o pessoal chegasse.

Acabei foi cochilando sentado, as horas passaram e quando dei por mim estava ouvindo vozes e barulho de remos sendo soltos no porão, das canoas; eles chegaram graças a Deus! Larguei o terçado lá mesmo e corri para a popa.

Aproveitando a passagem pela cozinha para desligar o fogo do café, que já tinha evaporado quase todo, subi os três degraus que levava até o popa. Tio marciano com seu bom humor disse: rapaz parece que o nosso vigia fez café, ta cheirando muito! Sem pestanejar respondi: - não tio esse café é o da janta, que resolvi esquentar.

Eu estava preocupado mesmo é em descobrir se o tal animal que produzira o tal som ainda estava lá fora.

Quando todos saíram das canoas, fui verificar o que eles tinham pego, para minha surpresa tinha duas pacas e muitos peixes, principalmente tucunaré, havia um bem grande que segundo meu pai ele zaguaiou.

O som que antes me encabulara se fez ouvir, antes que eu perguntasse meu pai vendo meus olhos atentos na direção que se deu o barulho, falou: - isso é apenas um casal de botos que estão caçando oque ficou do lado de cá do cardume de branquinha.

Aquelas palavras do meu pai soaram como bálsamo na minha imaginação fértil me senti muito mais seguro, não pude deixar de esboçar um sorriso franzino de agradecimento e ao mesmo tempo de alívio.

A lua começou a sair, mostrando sua beleza, dava pra ver o seu reflexo no lago, uma copia fiel. Foi por isso que os caçadores retornaram, quando a lua sai fica ruim de zagaiar.

Todos se dirigiram ao salão do barco, onde estavam suas redes, eu me encarreguei de retirar as pacas e peixes das canoas Colocando-os em local seguro, pela manhã teremos que pelar as pacas e retirar-lhes as vísceras, o fígado delas será nosso café da manhã...

Quando me aproximei de onde estava o grupo pude ouvir o seu Betinho comentar que ouviu um tiro vindo da direção de seu João Pinto, talvez se ele não errou o tiro teremos mais uma caça, somando assim três animais abatidos.

Agora sentado na minha rede perto do janelão direito, pude ver a lua brilhante que tornava prateada a silhueta da floresta, cobri-me dos pés ao pescoço, sem, contudo me desligar da conversa, meu pai fazia menções sobre sua experiência e o prumo que tem em zagaiar peixes em grandes profundidades, coisa que outros nem se quer tentariam. Reflexo de sua vida nativa nas margens do rio Negro e Solimões, esse último onde nasceu e passou a infância só depois indo morar na cidade de Manaus...

Alias todos ali são nativos e tem muita experiência, por exemplo: O seu Nelson deve agora com uns 45 anos, pele negra cabelos começando a ficar grisalhos, uma aparência sisuda, é engenheiro do Der-AM( Departamento de Estradas de Rodagem do Amazonas) não gosta muito de brincadeiras, é um exímio atirador, eu mesmo testemunhei ele acertar com um rifle 22 de ferrolho uma pilha pequena e depois um caroço de tucumã que eu mesmo ajeitei a uma distância de quase 100m.

Tem o seu Betinho, ou "cunhado" esse tem sangue portugues, talvez 5 anos mais jovem que seu Nelson, traços étnicos típico de europeu, olhos azuis e bochecha rosada mas nem por isso deixa de ser caboco, fica muito vermelho quando alguém lhe faz rir, tem uma audição incrivel é uma verdadeira onça ,é capaz de identificar um animal que caminha na mata a sua frente sem vê-lo somente através do som nas folhagens, também atira muito bem.

Tio marciano, mesma faixa-etaria do se Betinho, como meu pai diz: caboco puro. Orienta-se perfeitamente dentro da mata, é um perdigueiro capaz de seguir o rastro do que for gente ou bicho ,entrar aqui na selva que nem conhece dar uma volta de horas dentro de mesma abater um animal voltar e sair no mesmo lugar onde entrou sem cortar nem um pau, gosta de acerta sua presa "palmo e dentro" de perto.

Seu João Pinto, esse é compadre do papai e nosso vizinho desde quando nasci, mecânico marítimo tem a idade do seu Nelson, e como o tio Marciano tambem “caboco puro” dotado de boa pontaria e muita paciência, ele uma vez foi tomar banho na popa e caiu de um barco no meio do rio negro, ficou quatro horas nadando bem devagar como ele mesmo diz para não atrair as feras do rio, gosta mesmo é de um “mutá” (espera) com sua espingarda “16” ele é infalivel. Gosta de cochilar na mira, sempre abate sua presa com tiro na cabeça segundo ele para não estragar a caça...

“Na época em que nos fizemos essa caçada as leis ambientais não eram tão duras, O caboclo Amazonense podia se aventurar na floresta, e de la trazer a caça e os frutos que encontrasse para comer junto com a familia.”

A minha especialidade é colher frutos da mata, sempre que eu tenho a informação passada pelo meu pai sobre um pé de tucumã ou jatobá que esteja caindo, eu me dirigia até lá, isso é claro dependendo também da distancia que a fruteira se encontra, uma vez eu me perdi passei qua o dia todo perdido até meu pai me achar.

Estou com os olhos ardendo já sentindo que logo vou adormecer, me deito por completo, arrasto o lençol por cima da cabeça e caio no sono... Embalado pelo leve balançar do barco, e a brisa fina passa através dos janelões e o silêncio reinou.

Lulajungle
Enviado por Lulajungle em 17/05/2011
Reeditado em 17/05/2015
Código do texto: T2976779
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