Obsessão

Era o início da década de 80. O Parque Dom Pedro não era arrumado como nós vemos hoje. Claro que de lá para cá muita coisa mudou. Mas, naquele tempo havia mais mendigos espalhados por todos os cantos, o Terminal de Ônibus era aberto, todo desorganizado e os mendigos com seus cães amigos e fedorentos o invadia, as ruas não eram tão iluminadas de modo que facilitava demais para os assaltantes.

Roberto trabalhava no centro da cidade de São Paulo e para ir embora para seu lar tinha que passar pelo Parque Dom Pedro, que era, muitas vezes, sinistro. Pelo fato de estar acostumado não ligava tanto para esta questão. Não se importava com os bêbados e mendigos, porque eles não poderiam lhe fazer nada, já que não passavam de coitados. Dona Catariana, sua mãe, morria de preocupação e sempre dizia:

- Meu filho não fique vacilando no centro porque é muito perigoso e você não escuta as notícias do Gil Gomes. É cada coisa que acontece, a gente sempre acha que nunca acontecerá com nós.

- Que nada minha mãe. Eu conheço todo mundo lá no centro e quando demoro é porque estou bebendo com meus amigos no Bar do Tonhão, e ele também sai tarde de lá todo santo dia e nunca aconteceu nada.

- Meu filho eu não estou preocupado com o Tonhão e sim com você.

Aos 23 anos, muitos filhos não se preocupam com a preocupação dos pais. Roberto era um desses jovens insensíveis e respondia:

- A mãe se preocupa por besteira. O dia que Deus quiser me levar, ele vai me levar e não vai ter como eu escapar.

- Mas, nós temos que nos precaver e vigiar, meu filho.

Uma ou outra hora o irmão mais velho, Danilo, que era mais responsável, intrometia-se na conversa com certa mágoa, porque não fazia muito tempo que perdera o pai para a cirrose:

- Que merda Roberto! O pai morreu de cirrose por causa de cachaça e você fica bebendo, pô! Que porra! Você não se liga! Se a mãe reclama é para o seu bem, cacete!

- Vai ficar dando uma de certinho agora, vacilão? Você namora uma mãe solteira – porque naquele tempo havia mais preconceitos que hoje quanto a uma mulher que tivesse filho e não marido – e acha que eu tenho que fazer tudo o que você quer? Roberto sempre dava um jeito de cutucar na ferida do irmão, porque sabia que aquilo o machucaria.

Dona Catarina ficava nervosa com aquelas discussões, mas ninguém sabia que ela tinha problema no coração. Certa noite depois de uma dessas desavenças calorosas, enquanto dormia, ela começou a respirar sofregamente de modo que o barulho da respiração acordou Danilo que tinha o sono leve, ele foi até o quarto da mãe todo preocupado para saber o que estava acontecendo:

- O que foi mãe? Perguntou assustado depois que já havia acendido a luz.

Sua mãe respondeu tampando os olhos por causa da claridade repentina:

- O meu peito tá doendo, meu filho. Tá doendo muito.

Ele pediu socorro para seu irmão que também levantou assustado. Mas, enquanto Roberto pedia ajuda para o visinho que tinha um automóvel, Danilo viu sua mãe suspirar em seus braços. Foi um ataque fulminante. As imagens mãe dando último suspiro nunca mais sairiam de sua mente.

Diferente do irmão, Danilo era caseiro, o tipo de homem que toda mulher quer ter para si. Amava demais sua família e quando seu pai faleceu, ele se afundou no serviço num modo de fuga da realidade, fazendo horas extras para ocupar a mente e fazer o papel de senhor do lar. Agora ninguém saberia o que poderia acontecer com ele após a morte da mãe. O peso em seus ombros dobrara, pois seu irmão era o típico jovem trabalhoso.

O que ninguém podia imaginar era que Roberto sentiria muito a morte da mãe e reagiria de uma forma completamente diferente de seu irmão. Sua cabeça ficou desgovernada. Começou a fazer o que não fazia constantemente enquanto sua genitora era viva. Agora curtição começava na quinta-feira e ia até o domingo. Danilo morria de preocupação, porque conhecia o temperamento do irmão. Às vezes não dormia.

Foi numa sexta-feira de manhã que não tinha expediente, Danilo ouvia Gil Gomes para se distrair já que ele era um “bom contador de causos”:

“Roberto tinha acabado de receber e foi se divertir com os amigos no Bar do Tonhão, no Parque Dom Pedro. Roberto era novo. Apenas 23 anos. Seus amigos gostavam dele, mas ele possuía a fama de mulherengo. Deu em cima da mulher de um tal de Baiano...”

Aquilo parecia ser loucura, afinal já estava acostumado com a ausência do irmão, mas não custava nada averiguar. Danilo foi procurar saber na casa de Levi, o melhor amigo de Roberto, porque irmão não tinha voltado na quinta-feira. Lá, ele constatou a verdade: Roberto havia sido assassinado por Baiano. Para Danilo foi um choque ter a constatação no IML.

Daquele dia em diante Danilo nunca mais foi o mesmo. É claro que os visinhos mais próximos perceberam a mudança radical. Aquele rapaz sorridente de outrora morrera. A fisionomia agora era sisuda e o olhar mortífero, de um verdadeiro vingador. Certa noite em sua própria casa, após no máximo um mês do assassinato do irmão, ele disse com os olhos vermelhos por causa da fumaça do cigarro de maconha que seu amigo fumava:

- Tem como você me arrumar um berro? Perguntou, porque seu amigo sabia onde conseguir drogas e armas.

- Cê tá maluco Danilo! Pra que você quer uma arma?

- Eu vou matar o desgraçado desse tal de Baiano.

- Pirou de vez... Cara, deixa disso. Fuma um aqui comigo e deixe essa nóia passar, meu irmão.

Danilo se levantou quase puxando o amigo pelo colarinho.

- Olha aqui seu bosta! Eu tô deixando você fumar essa merda aqui na minha casa porque somos amigos. Os visinhos já vão ficar falando um monte de mim pensando que eu me descambei para o outro lado. O meu irmão morreu por nada e a porra da polícia não vai resolver merda nenhuma só porque ele era só mais uma merda de pobre que estava bebendo em um boteco, tá ligado?

O amigo não tinha muito que dizer. Sabia como funcionava o sistema. A Rota era famosa, mas certamente não pegava os traficantes de alto nível, porque a corrupção falava mais alta. Ela atirava, matava, depois limpava a cena do crime e fazia sucesso nos programas do Gil Gomes e do Afanásio. Refletiu um pouco e disse:

- Pô, Danilo! Cê tá ligado que eu te considero pra caralho, meu irmão.

Você é trabalhador, não um assassino...

Danilo não esperou o amigo continuar:

- Vai conseguir o cano pra mim ou não vai? O tom era autoritário e nervoso.

- Vou, vou. – Ele não pôde resistir à insistência – Acho que você ficou doidão de tabela isso sim.

E os dois amigos riram juntos em um dos poucos momentos que Danilo deixou que acontecesse. E ainda no meio dos risos o amigo perguntou:

- Mas, me diz uma coisa: você sabe aonde procurar esse tal de Baiano?

Silêncio.

Depois de uns dois dias do ocorrido o amigo de Danilo apareceu com um revolver calibre 38, dizendo que o revolver era frio e para ele tomar cuidado. Com a arma em mãos, Danilo virou uma espécie de Batman. Saiu perguntando pelos lugares onde o irmão frenquentara. Apareceu no Bar do Tonhão, fez amizade com o pessoal e quis saber se o tal do Baiano aparecia por lá.

- Faz um tempo que ele não vem aqui. Disse o Tonhão.

- Por quê? Quis saber.

- Se meteu em confusão.

- Caramba. Eu precisava falar com ele. Conheci o Zezim, um amigo dele lá da Bahia que mandou lembranças. Mas é besteira. Qualquer dia eu converso com ele.

Dentro de um mês isso virou uma espécie de hábito. A cólera dominara sua alma por completo e ele pensava só em vingança, por isso não desistiu até descobrir onde o Baiano morava. Danilo bateu palma e uma mulher grávida saiu, ele sentiu a vontade de pegar o revolver que estava na cintura, mas resistiu, porque seu objetivo era o assassino:

- É aqui que o Baiano mora? Ele perguntou.

- Sim. A mulher grávida respondeu.

- Eu sou um amigo dele. Qualquer coisa você diga pra ele que o Danilo esteve procurando por ele, tá bem? Foi dócil.

- Tudo bem eu digo a ele.

Agora com as investigações que havia feito, Danilo sabia onde que o Baiano morava e rondava; pelo Parque Dom Pedro procurava de alguma vítima depois das 22 horas. E ele se faria de vítima para conseguir se aproximar do maldito assassino de seu irmão. Aquela noite parecia ser mais escura que o normal. Não havia lua, a garoa era fina e o lugar onde passava era ermo da Avenida do Estado, perto de onde havia uns pés de eucalipto. Ele sentiu um cano duro em suas costas, olhou para todos os lados para ver se havia alguém por perto e não conseguiu enxergar ninguém. Então, ouviu uma voz arrastada em seu ouvido:

- Tu tá procurando pelo Baiano?

O coração de Danilo estava acelerado pela surpresa e pela ameaça eminente:

- Sim. Ele conseguiu responder com a voz meio trêmula.

- O Baiano sou eu. Foi no Bar do Tonhão e lá em casa à minha procura, né? Tô sabendo seu pangaré.

Não deu tempo para nada, Danilo sentiu uma lâmina fria entrando em suas costas e perfurando o pulmão, a segunda peixeirada tirou completamente suas forças, ele caiu, bateu a cabeça na boca-de-lobo, sentiu o sangue saindo pela boca, logo após olhou de soslaio e viu o olhar de escárnio de seu algoz, enquanto todas as luzes ao seu redor se apagavam.

Cairo Pereira
Enviado por Cairo Pereira em 16/05/2011
Reeditado em 19/07/2020
Código do texto: T2974560
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