O DEFUNTO QUE NÃO MORREU
Thereza Poesia
Todo mundo conhecia “Seu Zé Dadão” em Santa Cruz do Inharé. Era de uma família grande e tradicional e possuia uma “bodega” aonde vendia de tudo, mas de tudo que não tem futuro, como espigas secas de milho que jaziam penduradas no teto juntamente com cascas de laranja, pavios de lamparina, tiras de couro de vaca e outras coisitas mais.Vendia também querosene e naquela época, a cidade não tinha luz elétrica que só chegou depois da inauguração da Usina Paulo Afonso. Possuía um gerador que era desligado impreterivelmente às 9 hs da noite, então todo mundo ficava na base da lamparina e com isso, sendo o único fornecedor, o querosene era o produto que mais vendia na bodega de Zé Dadão.
Uma tarde, minha avó me mandou comprar um litro.
-Seu Zé, eu quero um litro de querosene.
Pegou o litro, encheu, mas deixou faltando uns quatro dedos, certamente para que eu, menina, não derramasse.
-Tá cheio não, seu Zé, falta quatro dedos.
-Espera aí, cabritinha.
E colocando o litro em baixo da torneira, deixou que querosene do depósito escorresse inteirinho, até a última gota. A bodega ficou alagada e com um cheiro horrível, mas no final me olhou e disse:
-E agora, será que encheu?
Doutra feita, estava sentado na praça quando passou Miguelão que já sabia dos seus surtos e perguntou:
-Tem fósforo aí, seu Zé Dadão?
-Não, porque não fumo.
-Disseram que senhor tem tudo.
-Na próxima eu tenho.
Uns três meses depois, estava o velho tomando banho de açude e Miguelão que também estava lá, resolveu fazer-lhe uma brincadeira:
-Tem fósforo aí, seu Zé?
E ele enfiando a mão no calção, exibiu a caixa de fósforo como um troféu e gritou:
-Moiado , mas tenho!
Assim era Seu Zé Dadão, figura conhecida na cidade pela sua falta de delicadeza com as palavras e com as pessoas, mas muito querido por todos.
Certo dia, em grande alvoroço, anunciaram que o homem havia falecido. Toda cidade foi para o velório, o homem morrer assim, de repente, disseram que estava na bodega, quando um freguês chegou para comprar pavio e ele estava lá , estirado em cima de um caixote. Isso era muita novidade, morrer de repente, todo mundo foi conferir.
Velório chorado, família grande, muitos amigos,mas na hora do enterro, começou a chover. –Vamos assim mesmo, se não vai feder, gritou o sacristão. Bora que a chuva está fina.
Foram. Ao chegar perto do cemitério, a chuva engrossou de vez, só deu tempo de deixar o caixão na casinha das almas e todos voltaram para casa esperando a chuva passar para enterrar seu Zé, inclusive a viúva, amparada por seus seis filhos.
Em casa, portas fechadas em sinal de luto, a família esperava e chorava, quando de repente:
Toc... Toc... Toc...na porta.
-Deixe que eu vou abrir, deve ser comadre Assunta que chegou do sítio. Disse a viúva.
Mas quando abriu a porta, estava lá seu Zé Dadão, todo molhado, de mortalha de São Francisco, esbravejando:
-Que demora da molesta pra abrir uma porta, mulher, tou todo moiado!
A mulher caiu durinha! Quase não torna. Seu Zé Dadão ainda viveu mais treze anos e quando morreu, de verdade, só enterraram o corpo dois dias depois, quando já fedia mesmo, com medo de uma nova ressurreição.