A casa do Bragança

Era uma casa simples, avarandada e com frondosas árvores que a cercavam. Fora construída alguns anos depois da segunda grande guerra, pelo casal que acabara de se unir. Situava-se bem perto da entrada da cidade, onde um pontilhão fora construído para isolar a ferrovia, dividindo assim o pequeno lugarejo de sua zona rural no noroeste paulista. A chácara era referência para aqueles que chegavam de exaustiva viagem, pois anunciava que esta chegava ao fim. E a casa parecia olhar as mudanças que ocorriam ano após ano naquele pacato lugar...

O casal era humilde, mas feliz. Ele, trabalhador de roça e com as mãos calejadas pela busca diária do alimento que a terra nunca lhe negou. Acordava quando o galo ainda dormia pesado em seu sono, e antes de iniciar sua lida forrava a barriga para agüentar o tranco duro que é o trabalhar no campo.

E como era bom o desjejum que ela lhe preparava todos os dias. Mesmo que o sono por vezes a irritava, sabia que era passageiro. Bastava aquele sorriso brotar no canto da boca do marido e já ela se desmanchava de amor pelo homem que escolheu amar. A vida, por mais simples que fora, era bela aos olhos do casal. Reinava o amor entre os dois, testemunhado de perto pela rica natureza que os rodeavam: árvores nativas, pássaros canoros e um plaino pasto diante da casa. Ele sempre dizia à esposa que daria pra fazer um bom campinho de futebol, pra quebra da rotina com um pouco de lazer...

No ano seguinte, ele finalmente arrumou o terreno para fazer o campinho. Assim, podia receber alguns amigos pra um pouco de recreação já que a vida lhe era dura na maior parte do tempo. Ela aprovava a idéia, e ficava da varanda olhando ele demonstrar suas “inabilidades” esportivas. Vez ou outra caminhava ao pé da trave para levar água ao amado e aos seus amigos que arriscavam as canelas jogando futebol...

Um belo dia, ele saiu para o trabalho enquanto ela se ocupava dos afazeres da casa. Limpava o quintal, próximo a cisterna que havia atrás ao lado da frondosa mangueira. Num descuido, escorregou e caiu naquele buraco profundo para nunca mais voltar. Quando ele chegou, não encontrando sua amada, correu pra tudo quanto era lado gritando seu nome. O silêncio era total e fatal foi o momento que a encontrou já sem vida no fundo daquele poço.

Dizem que a enterrou naquele mesmo quintal, próximo da cisterna que a vitimou e depois saiu errando pelo mundo, sem nunca mais voltar. Talvez por isso nunca mais ninguém tivesse habitado aquele que um dia foi tão bela casa envolta à natureza!

E dele não se teve mais notícias até os dias de hoje...

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Todo final de semana era a mesma coisa. A molecada toda se reunia no Bragança, o famoso campinho que era palco das mais divertidas “peladas” da rica infância. Eram épocas de fim da ditadura, mas quem lá queria saber sobre inflação galopante, gatilho e tantos outros problemas que só diziam respeito aos adultos? Queria-se mesmo era poder fazer parte dos times, pelos quais durante o dia se revezavam em partidas empolgantes de futebol. De tempos em tempos se via um trem passar pelo velho pontilhão...

Vez ou outra organizavam um campeonato. Não era tarefa fácil, porque organização não era o forte em meio a tanta brincadeira e algazarra. De um jeito ou de outro, no entanto, se dividiam os times (aos quais se davam nomes de agremiações famosas), estabeleciam-se os grupos e arrecadavam dinheiro para comprar um par de troféus.

A tabela dos jogos previa no máximo duas semanas para que estes fossem finalizados, tamanha a vontade que se tinha de jogar bola por toda aquela meninada. Só não era fácil quando ela caia depois da cerca de arame farpado, perto da casa do Bragança, como era conhecida...

Durante a semana, o campinho não era muito freqüentado. Mas sempre havia alguns que eram mais “fominhas” por assim dizer, e não deixavam de marcar presença quase diária por lá. Mas sempre depois da escola, donde saiam correndo para pegar ainda o resquício de sol que se aproximava do horizonte. E treinavam, treinavam até quase ele se por, pois não era bom ficar ali quando a noite chegava. Era o que diziam os mais antigos...

Um belo dia, alguns amigos treinavam e de tanto brincar não atinaram que o sol acabava de se esconder no horizonte, anunciando que a noite chegara. Como estava divertido brincar de pênalti naquele dia! Foi então que perceberam um clarão na casa abandonada, como se fosse uma luz que tivesse sido acesa. De súbito, o clarão começou a tomar forma e se transformou num vulto que agora já saia da casa chegando à varanda parcialmente encoberta pelo mato crescido a sua frente.

Um entreolhar entre eles foi o bastante para que pegassem a bola e rumassem para o pontilhão, buscando voltar à cidade e, claro, para suas casas. De uma trave a outra, um deles se lembrou do relógio que ficara encostado junto a primeira quando já se encontravam na segunda. Ao se virar e olhar para trás, fazendo menção de voltar, viu uma silhueta branca de uma mulher, que estava quase chegando naquela primeira trave. O vulto parecia flutuar carregando algo nas mãos, envolta por um brilho que crescia e ofuscava a visão que já aquela altura não mais distinguia o real do imaginário.

Não mais olhou para trás...

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O galo cantou anunciando novo dia que começava. O sol raiou forte naquela manhã, prenúncio de calor comum à região. Um viajante que chegava à cidade parou antes do pontilhão, no momento que um trem passava. Ao lado do Bragança, checou o endereço do destino que lhe trazia ali! Contemplou um pouco a natureza em sua volta sentindo o ar puro daquelas paragens, juntamente com o coro formado pelo canto dos pássaros. Absorto em seus pensamentos avistou algo ao pé de uma trave naquele campinho de futebol. Curioso, desceu do carro, passou a cerca de arame farpado e se aproximou para averiguar o que era.

Chegando, viu que se tratava de uma moringa de barro cheia de água. Ao seu lado, um relógio de pulso parado por falta de corda...

Danilo Rodrigues de Castro
Enviado por Danilo Rodrigues de Castro em 10/05/2011
Reeditado em 10/05/2011
Código do texto: T2960273