O menino que virou Bezerro

Foi a muito tempo atras numa época em que aqui em Roraima o gado era criado solto, não haviam cercas, a identificação dos animais de um fazendeiro para outro era a marca do ferro feito no animal quando chegava o verão.

Um menino de dez anos campeava no meio daquele lavrado quando se viu perdido. Era mês de abril período em que as chuvas começam a cair enchendo os lagos rios e igarapés, inundando os campos. Naquela época não havia estradas para o menino se guiar, vendo-se perdido, ele resolveu procurar um "Caimbé grosso" Curratela Americana (arvore dominante do lavrado de Roraima) subindo nesse caimbé talvez ele consegui-se enxergar a cumeeira da fazenda ou algo parecido.

Aproximou-se de um enorme e solitário Caimbé, trotando bem devagar com seu lavradeiro (cavalo oriundo de Roraima), quando chegou embaixo da arvore ao ponto de sentir a sua sombra, teve uma surpresa. Em um galho grosso, o mais baixo, dormia uma suçuarana (onça do lavrado) a “bicha” estava com os braços abertos abraçando o galho, com a chegada do cavalo ela se espantou, botou as orelhas para trás arreganhou os dentes e pulou feito um raio. Sua atitude espantou o cavalo que assustado jogou o moleque no chão, para sorte dele não tinha nem um "tepicuim" cupinzeiro perto onde pudesse se bater. O espanto da onça também foi o do cavalo, os dois desapareceram correndo no meio do lavrado, cada um para um lado..

Para quem já estava se sentindo perdido, o garoto ficou quase doido. Para completar sua desgraça o céu começou a se encher de nuvens escuras ameaçando cair um pau dágua, ele pensou: “agora com o lavrado alagado é que ninguém vai me achar mesmo”.

Sem muitas alternativas Cleozinho como era chamado, resolveu subir no pé de Caimbé, tirou da cintura a única coisa que lhe restou uma pequena faca, mais parecia à língua de um "peba" (especie de tatu). Subiu na árvore o mais alto que pode, lá de cima só viu serra e campo, nada de enxergar cumeeira da fazenda. Resolveu que ia ficar ali até alguém achá-lo. Seu maior medo era a suçuarana voltar.

As horas foram passando, o menino tentava cochilar mas ficava com medo de despencar, pensativo ele olhou para baixo e viu que o laço feito de couro que ele carregava pendurado na chincha da sela também tinha caído, desceu rápido e o pegou. A tarde já chegava ao fim, para não despencar lá de cima resolveu se amarrar com o laço e ali mesmo dormir. À tempestade que se formara durante o dia resolveu cair somente à noite.

Era daquelas com vento forte e frio, o menino pensou que iria morrer, os raios cortavam o céu clareando tudo, ele só via campo, serras e buritizais, os trovões explodiam encima de sua cabeça, fazia um frio medonho, o vento soprava forte de assobiar nos ouvidos, quase jogava o pé de Caimbé no chão... Não aguentando o frio que se tornou insuportável o menino desmaiou.

Depois da tempestade veio à Bonanza... O dia clareou, limpo, com sol forte, afinal a chuva da noite descarregou todas as nuvens. A fome acordou Cleo que logo se desamarrou, depois de dar uma bela olhada em volta resolveu que iria no buritizal ali perto procurar buriti caído pra comer. Como estava com medo da Suçuarana aparecer desceu da arvore e foi engatinhando pelo meio do capim em direção ao buritizal ali perto. Nesse meio tempo, longe ouviu o mugido de uma vaca, era uma mamãe chamando seu filhote. Isso o fez lembrar-se de casa, sua mãe aquela altura estaria preocupada.

Continuou engatinhando através do capim, faltavam uns cem metros para chegar à beira do buritizal, de repente viu o capim mexendo em sua frente, ficou parado, esperando para ver do que se tratava.

Podia ser o bezerro perdido da vaca, ou quem sabe um "rabudo" (tamanduá Bandeira) melhor esperar... Esperou... O capim foi abrindo na sua frente, ele ali parado, de repente foi aparecendo o animal, ou seja a bunda do animal que veio chegando, chegando, ate encostar nele, surpresa! O animal vinha de costas. Era a suçuarana de novo... Ela arrastava um bezerro de uns quatro dias de nascido, o pobre bicho já estava morto. Ela abocanhou a sua vitima na garganta e a puxava na direção do caimbé grosso, no momento que esbarrou com a bunda no menino que estava paralisado de medo, a bicha virou pra ele o menino assombrado puxou o capim para frente de sua cara e deu um baita grito isso fez a bicha entortar as orelhas dar pulo pro lado e abri nas carreiras. O menino quando viu que onça correu, não teve ação, ficou parado se refazendo.

Refeito do susto, a fome fez ele pensar em beber um pouco do sangue ou comer um pedaço do bezerro que já estava ali morto. Foi ai que ele ouviu a vaca chamando Muuuu! Teve uma ideia. Pegou sua faquinha pulou pra cima do bicho e o esfolou, depois retirou o seu calção jogou de lado e puxou o couro por cima dele, melado de sangue mesmo, isso até ajudou a grudar melhor no seu corpo.

Em seguida ele esfregou um pouco para o couro ficar mais assentado nos braços, em seguida saiu engatinhando em direção ao mugido da vaca que procurava a sua cria. Quando os dois se encontraram ela estranhou o cheiro do falso bezerro isso devido ao cheiro forte de sangue, a vaca ficou pisoteando na frente do menino, mas o moleque sem pestanejar foi engatinhando para baixo da vaca, quando chegou bem embaixo deu logo umas cabeçadas no seu ubre (peito) em seguida começou a mamar... A vaca por sua vez foi se acalmando e o menino mamou até encher a barriga.

Bucho cheio deitou no capim e pegou no sono, afinal a tempestade da noite não o deixou dormir. Quanto à vaca ela ficou ali protegendo “o seu filhote” depois do cochilo o menino acordou com umas boas lambidas na sua cara, ela lambia o sal do sangue no rosto do moleque que tava de pelo deitado de tanta lambida, esse aproveitou o carinho para mamar de novo.

O pequeno Cléo começava a gostar da situação, afinal talvez ninguém o acha-se naquela imensidão, por isso estava disposto a ser adotado pela mamãe vaca. A tardinha sua mãe, (a vaca) para protegê-lo da suçuarana que continuava por ali lhe rondando, fez o menino a seguir ate umas grutas, lugar sequinho, bom para se abrigar da chuva...

O tempo foi passando o bezerro, quero dizer o menino já estava se acostumando com sua nova mãe. Era período de chuva e o pasto estava bom. Quando a vaca se deitava para remoer, o menino deitava perto dela arrancava um pau de capim botava no canto da boca e ficava mastigando, já começava a achar o talo de capim gostoso.

Sua mãe de leite lhe mostrou vários segredos daqueles campos enormes, levava-o para lamber sal num lambedor perto da "pedra pintada" (uma enorme pedra bem no meio do lavrado cheio de pinturas rupestres). Quando era para se abrigar da chuva forte eles iam até as grutas próximas do rio Ereu, cheias de desenhos primitivos gravados nas paredes, lugar de botar medo, cheios de morcegos, e às vezes cascavéis.

Tinha algumas grutas com panelas de barro cheio de ossos de gente, o lado bom de tudo isso é que ali era sempre morninho. Seis meses se passaram... A chuva parou, o verão começou a chegar. As águas começavam a baixar, o vento do lavrado começou a balançar os Caimbés e buritizais que pareciam crianças de mãos dadas com os cabelos ao vento, as pequenas flores selvagem no meio do capim começaram a entrar no cio e brotar, era a primavera que chegava, os lagos começaram a se encher de garças, passarão, marrecos e patos selvagens, o sol brilhava e ardia... Começava a secar os campos...

O menino se sentia com a força de um garrote, foi beber água no lago e viu seu reflexo, percebeu que o tempo havia passado, pois os chifrinhos do couro estavam bem maiores. ele sempre brincava com seus amigos de dar marrada e esfregar os chifrinhos nos caimbé pra passar a coceira.

Em uma tarde ensolarada algum tempo depois, os campos também se encheram de peões levantando poeira em cima de seus lavradeiros (cavalos introduzidos a mais de 200 anos em Roraima), eles gritavam, rodando o laço e estalando a “chicaca” (chicote feito de couro, o estalo parece o de um tiro de revolver). Era chegado à época da ferra do gado, isso significava pegar aqueles que haviam nascido durante os seis meses de inverno e por neles a marca das fazendas.

Dois peões passaram galopando perseguindo um garrote, um deles viu o menino ou quero dizer o garrote, falou: olha! Tem um ali! Apontando. Esse por sua vez disparou na carreira, de quatro, não conseguia ficar de pé, suas juntas estavam duras pelo costume de andar de quatro pé, nervoso não conseguia falar para dizer quem era só conseguia correr. Foi alcançado pelo peão que o laçou, chamou na chincha, o peão arrastou o moleque sem prestar muita atenção no que estava fazendo, levou-o até perto onde estava o fogo da ferra, ali peou. O menino assustado não conseguir falar, afinal há a seis meses ele não falava com ninguém. O garoto só conseguia se mijar de nervoso e disser: muuuu!. Quando o peão se aproximou dele com o ferro quente para lasca na sua coxa ai ele fez um esforço é gritou “não faz isso rapaz! sou eu o Cléo!!”.

Nessa hora o peão que estava com o ferro na mão, deu um pulo para trás e disse “que diabo de assombração e essa, um bezerro falante, vou matar essa desgraça” bateu com a mão no coldre para pegar o revolver, o homem que segurava na corda que prendia as mãos do menino disse “calma rapaz não faz isso”.

Nesse momento Cléo conseguiu livrar uma das mãos e puxou o couro velho de cima da cabeça dizendo: “Não atira, sou eu o Cléo o menino que estava perdido”. Quando os peões viram que por baixo do couro tinha um menino ajudaram-no a se desamarrar, outro peão que vinha chegando e trabalhava na fazenda do pai do menino pulou do cavalo pegou o menino no colo e disse: “ Cléo rapaz por onde tu andava? tua mãe já acendeu até vela achando que tu tinha morrido no meio desse lavrado!”. Depois de tomar um banho no igarapé e tirar o couro velho do corpo, Cléo foi se sentar com os peões bem embaixo do caimbé grosso onde tudo começou para comer paçoca e contar sobre a grande aventura que ele passou.

Essa historia e inspirada no causo de " Josimo Macedo de Alencar "O velho Josimo" fazendeiro de Normandia, fazenda Condado na beira do Rio Maú, era tido como um homem muito brincalhão contador de causos.

e um dia disse para os seus companheiros, um deles Cléo Coelho homenageado na historia, que já tinha sido bezerro nesse enorme lavrado de Roraima"

Escrito por: Luciano Lula Alvarenga

Lulajungle
Enviado por Lulajungle em 05/05/2011
Reeditado em 13/07/2017
Código do texto: T2949980
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