Estória de pescador

- Que tal pescarmos no feriado de Tiradentes em Borborema, no rio Tietê?

Até aquele dia, não cogitava sequer tentar um pesqueiro; mas em barco num rio como o Tietê? Concordei na hora...

Para quem não conhece o Tietê, rio genuinamente paulista, nasce na serra do mar, em Salesópolis, e após cortar o estado diagonalmente, deságua suas águas no rio Paraná, divisa com Mato Grosso do Sul. Infelizmente, sua “estada” na capital não é das melhores, pois recebe tanto lixo e esgoto que muitos duvidam que possa ter vida o habitando quando, pujante, corta o interior cumprindo seu destino.

Convite feito, convite aceito. Fomos, além de mim, mais três amigos, sendo um o dono do rancho onde ficamos hospedados. Após os preparativos de compras de mantimentos, tralhas de pesca e, claro a cerveja, partimos tão logo o dia findava e, nos seu lugar se instalava a noite. Seguimos viagem.

Já se passava do meio da noite quando chegamos. A casa, simples de um rancho de pescador tinha tudo o que se precisava para uma boa estadia: algumas camas, um fogão, uma geladeira e a churrasqueira! Pra que mais? Ah sim, um freezer também para guardar as corvinas, tão comuns naquelas paragens. Depois dos preparativos que antecedem um dia de pesca, fomos dormir ansiosos pelo encontro com a água de um rio que, represado, mais parece um grande lago na ensolarada planície que pousa sobre um rico aqüífero, berço das águas!

O relógio tocou as quatro e meia da madrugada, naquele sábado 21 de abril – data que um dia levou um revolucionário a forca em nosso país – e que ficaria lembrado para sempre em nossas vidas. Levantamos e, após higiene pessoal e um café preto, seguimos para levar o barco à barranca do Espírito Santo, braço do Tietê onde o rancho está instalado.

O sol começava a despontar no horizonte quando entramos na água, empurrando o barco a certa distância tal que o motor não mais pegasse no fundo lamoso do rio. Partida dada, seguimos para o meio daquela imensidão de água doce, cerceada por aguapés, taboa e troncos oriundos da cheia quando do represamento.

Ao sair com o barco, uma euforia tomava conta de todos. Claro que as estórias de pescador já começavam, tornando-se uma verdadeira competição de quem era o melhor pescador. Levamos uma bolsa térmica, recheada de cerveja e alguns lanches de pão com mortadela para apaziguar a fome que se apresenta avassaladora quando se está longe de uma geladeira, fogão ou um restaurante qualquer!

Paramos próximo à margem para apanhar camarões de água doce, um dos quitutes mais apreciados pelas corvinas que habitam profundo o rio Tietê. E quem diria que vieram de água salgada? Batemos peneira e selecionamos os mais graúdos, pensando que pegaríamos os maiores peixes que o rio poderia nos dar.

Alguns minutos passados e já nos encontrávamos no meio do rio, próximo a uma bóia que delimita onde se situa o leito original do Tietê. Desde há alguns anos, o rio tornou-se preparado para a navegação, sendo importante canal de escoamento de grãos que vêm principalmente “dos Matos Grossos” com destino ao porto de Santos.

As horas passavam, e com elas as latas de cerveja, os sanduíches, as piadas e poucos peixes. A conversa talvez estivesse atrapalhando nossa pescaria! Pescávamos dentro do canal, ficando a uma distância não tão longa de outros próximos a uma das bóias. Até que avistamos, bem ao longe, uma balsa que parecia, pela distância, um traço no horizonte.

Um pescador matuto, acostumado com o lugar, nos disse:

- É melhor “ocês” saírem daí, “pruque” tão no prumo da balsa!

Já um tanto "altos" pela bebida, não demos tanta importância no início. Alguns minutos depois, no entanto, percebemos que a balsa seguia um curso tal que passaria pelo lugar que estávamos. Assim, começamos a preparar a tirada do barco: içar as poitas, arrumar posições no bote e acionar o motor. Mas quem disse que o motor funcionaria... A barca, lenta ao navegar e cada vez mais próxima... E o motor nada. Dois de meus amigos mergulharam na água para fugir do iminente acidente, mas eu ainda confiava que o terceiro, piloto experiente, pudesse nos tirar sem lesar sequer a embarcação.

Porém, o motor “nadou” de vez, não funcionando e nos deixando na mão. O choque se aproximava cruel e tememos pelo que acabaria ocorrendo. Pensei que se saltasse naquele momento, a balsa jogaria o barco sobre meu corpo na água, o que seria fatal. Foi quando num lampejo aparentemente heróico, porém repleto de loucura, em pé no barco, pensei:

- A balsa não é tão alta... To até vendo por cima dela! Já sei: quando ela bater no barco, pulo sobre ela e assim me salvo... E ainda sem me molhar!

Ledo engano. Quando pulei, bati sim os braços sobre a balsa, mas meu corpo, em pêndulo, caiu na água em frente à embarcação que ocupava uns cem metros no comprimento. Ao mesmo tempo pude ouvir alguém dizer um “Este já era”... Por obra de Deus, não sofri impacto do casco, pois milagrosamente cai entre duas colunas que formavam a proa. Instantaneamente a adrenalina estourou em meu corpo e polui-me a idéia o ver quatro amigos mortos, transformando em tragédia o que se esperava fosse diversão.

Em turbilhão, fui sugado alguns metros para o fundo do rio, porém de olhos abertos pude perceber a direção que a balsa rumava, o que me fez manter o senso de direção. Pensei, em fração de segundo, em toda minha família que deixaria se o rio me engolisse fatalmente. Só que a vida nesta hora se torna mais preciosa, e pensando em todos que me esperavam voltar em toda minha integridade, nadei sobremaneira para o lado, fugindo de algum perigo que o casco da balsa pudesse me oferecer.

Depois de várias braçadas, finalmente percebi um ponto de luz sobre minha cabeça, tão ínfimo que julguei poder ser ela oriunda da esfera divina, que se supõe ocorrer quando somos chamados pela morte implacável. O fôlego já me era pouco, mas em esforço final destinei braçadas fortes e contínuas, buscando alcançar aquele brilho que se aproximava.

Eu estava salvo...

Resgatado por um barco próximo, vi que meus amigos também já tinham tido feliz destino. O risco de morte tinha ido embora junto com a balsa que sequer parou quando deste estúpido acidente. Recolhidos, tremendo numa mistura de medo e frio, rezamos agradecendo ao bom Pai pela oportunidade de continuarmos em vida... Sãos e salvos.

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Esta não é uma estória de pescador, infelizmente. Este causo ocorreu da maneira aqui contada. Se eu conto este conto (sem aumentar nenhum ponto) é para alertar a tantos que o lêem a importância de reconhecermos nossos limites frente à mãe natureza – bela e generosa – que nos cede tantos prazeres, querendo no entanto mais sabedoria e respeito de nossa parte... Pro barco da nossa vida seguir seu caminho feliz e em paz!

Danilo Rodrigues de Castro
Enviado por Danilo Rodrigues de Castro em 29/04/2011
Reeditado em 29/04/2011
Código do texto: T2937749