Criavam galinhas.
Liduína trabalhava na fazenda como lavadeira e Zeizefo não pegava no pesado, se dizia chagado, perrengue pra lida no cabo da enxada. Possuía uma sanfoninha oito baixos e passava os dias no seu ranchinho de sapé tocando moda caipira.
Estranho é que no galinheiro do casal só havia galinhas coloridas, não da cor normal de galinha caipira mas cor de rosa, azul, verde, amarelo e roxo. Eles afirmavam serem de uma raça diferente, porém dos ovos que vendiam não saiam frangas nem galos de cor nenhuma. A raposa devastava o galinheiro de todo mundo, menos o deles, pois Zeizefo sabia rezas para espantar bichos predadores.
Ramiro e Bastiana moravam com os filhos ali perto. O sonho das crianças era aprender tocar sanfona.
Um dia, Zeizefo apareceu tristonho na casa de Ramiro, com a sanfoninha no lombo e foi logo dizendo:
—O cumpadi num quê comprá a sanfoninha prus minino não?
—Uai cumpade Izé, pra quê ta quereno vendê? Um trem qui ocê tem tanta istima, isturdia memo ocê falô qui essa sanfona é um fio que ocêis num teve.
—Na minha vontade ieu nunca qui mi separava dela não, mais a Liduína incasquetô cá idéia de querê ponhá dentadura na parte de riba da boca, e só cum dinhêro das galinha dela num dá pá pagá o home qui faiz. Ieu vô tê qui interá.
— Mais a cumadi ta certa, ficá sem dente é munto ruim memo.
—Cá pra nóis cumpadi, ieu acho bobage . Se Deus Nossu Sinhô queresse a gente de dente a vida intêra, num fazia ês duê e nem dirrubava ês, né memo? Pra mim dente só faiz farta na hora de chupá cana ô cumê guaiaba.
—Vortano no assunto da sanfoninha ...quanté qui o cumpadi tá pidino?
—Uai sô... Quanté qui ocê dá nela?
—Uai, ocê cunhece o ditado, né? O dono do boi é quem pega no chifre.
—Tava pensano im pidi um leitãozin da quês lá do seu chiquêro...
—Oia cumpadi pa sê franco cocê, num vale isso não. Ela já tá meia dirrubadinha...
—Só pru fora... Cumpá Ramiro... Só pru fora. Mode quê ela inda toca munta moda boa. As du Tunico e Tinoco ela inté sabi de có.
—No leitãozin num posso não, o trem anda custuso, serve umas cinco galinha gorda? Nóis inté tinha munta penosa, mais um bicho cumedô de galinha deu uma roçada nu galinhêro.
—Negoço feito! A oito baxo é sua!
Zeizefo dobrou o morro com as cinco galinhas nas costas enquanto o pai chamava Chiquita e Toizinho que pularam de alegria quando viram a sanfona. Era um sonho realizado!
Dali em diante os meninos cantavam todo dia até ficarem roucos. Já se viam cantando “na rádio”. Era uma desafinação de dar dó mas estavam felizes demais. Para os tios não tinha nada melhor que ouvir a Chiquita cantar Cafezal em flor, de Cascatinha e Inhana, Moreninha linda do Tunico e Tinoco, arrancavam lágrimas dos avôs ao cantarem Ipê florido do Liu e Léu.
Há um ditado que diz que alegria de pobre dura pouco. Num domingo ensolarado de agosto, o capim estalava de tão seco. O povo havia ido à casa de Ramiro para ouvir a cantoria das crianças. Por volta do meio dia a menina teve a infeliz idéia de mandar o irmão buscar um fogo lá dentro no fogão a lenha. Chiquita disse:
— Ô Toinzim vai lá no fugão e pega um tição... Vamu quemá o pasto, ieu vi o pai falano com o vô Joãozim antionte, qui tava quereno quemá pa modi brotá capim novo pás vaca.
Toinzinho foi correndo cumprir a ordem da irmã.
Meu avô dizia uma frase que eu não me esqueço. “Fogo morro arriba, água morro abaixo e muié quando qué... nada cerca” Então o fogo se alastrou pelo pasto o vento ajudou a esparramar mais ainda. Foi um Deus nos acuda! Quando o povo viu a fumaça o fogo já dobrava a encosta. Latas de água, galhos de ramo verde, vassouras pra tentar conter o incêndio que consumia todo o pasto. Alguns tiravam o gado para não morrer queimado, outros batiam com os ramos no capim para apagar, alguns capinavam tentando fazer aceiros pra evitar que pulasse fogo para as outras propriedades. Inocentes , Chiquita e o irmão assistiam aquilo tudo se divertindo muito e ainda gritavam:
— Vai Ti Oripe, corre, tira os bezerros!
—Corre Zé, larga de moleza!
—Vai tia Tereza, leva mais uma lata d’água!
Estava todo mundo estropiado e o gado chamuscado quando o fogo foi contido. Ao sair o avô das crianças ainda recomendou ao genro:
—Oia lá cumpadi Ramiro, num bati na Chiquita nem no Toinzim heim! Ês num sabi o que faiz... minino piqueno é assim memo...
Quem disse que o Ramiro não bateu?Foi a maior sova que os dois tomaram na vida, foi só o povo dobrar na estrada que o pai tirou a cinta e tundou os dois até fazer vergão. Mas isso não foi o pior, criança de roça daquele tempo tinha o couro curtido, o triste foi que o pai pegou a sanfoninha oito baixos botou nas costas e foi lá no Zeizefo dizendo que ia buscar as galinhas de volta.
Chorando, viram o pai dobrar o morro, no coração de Chiquita isso ficou gravado pra sempre. Sua tenra idade não lhe permitiu entender o motivo pelo qual o pai estava lhe tirando a sanfona. Só sei que junto com ela se foram seus dias de cantoria, nunca mais se ouviu Chiquita cantar Cafezal em flor.
— Cumpadi Zeizefo ieu vim devorvê a sanfona.
—Mais pra quê cumpadi? Os minino tava tão filiz cum ela.
—Mais os fedazunha botaro fogo no pasto ieu vô castigá os dois.
—Mas as galinha qui o cumpadi breganhô cumigo a Liduína já vendeu na cidade.
—Serve das otras, a Bastiana inté pidiu pá vê se a cumade troca naqués galinha de raça, ela qué uma cor de rosa e duas verdinha. Só ocêis qui tem essa raça de galinha.
Sem alternativa e querendo a sanfona de volta, Zeizefo foi lá ao terreiro e pegou três frangas coloridas da Liduína, que não estava em casa.
Poucos dias depois choveu muito naquelas bandas, Ramiro e Bastiana ficaram boquiabertos quando os meninos gritaram avisando:
— Paiêeeeeeeeee!!! mãêeeeeeeeeeee...as galinha cor de rosa e verde da cumadi Liduína tão disbotano e ficano da cor das franga qui a raposa pegô pá cumê.