O que dona Severina uniu...

Thereza Poesia

Quem nunca viveu no interior, perdeu de conhecer e aprender o que de melhor essa existência pode nos oferecer. O convívio com as pessoas é diferente, as cidades são comunidades aonde todos se conhecem pelo nome, beatas e mocinhas disputando a pracinha depois da missa do domingo...as beatas procurando fofocas, as mocinhas, namorados...o ônibus que vem de passagem e que para na praça...os suarês (saraus em interiorês) no clube local (sábado esperado), as festas da padroeira, aonde a cidade toda se enfeita, com banda de música a tocar alvorada, alunos fardados na procissão, barracas com comes e bebes, leilão,foguetões, parque de diversão; as disputas políticas aonde prevalecem apenas dois partidos, aos quais muitos não sabem o nome, conhecem apenas as cores, verde ou vermelha, por exemplo...a rivalidade entre escolas, o time de futebol que nunca passou da lanterna mas desperta o amor e o bairrismo da cidade inteira...Padre, Prefeito e Doutor, assim nessa ordem mesmo que funciona a autoridade, é assim o interior. As vezes a seca castiga, a feira fica fraca e cara, como diria minha avó, mas sempre tem a refrescância de um açude de água escura e doce para quebrar o galho da moçada no domingo.

Fiz essa pequena dissertação, para lhe trazer bem para o coração de uma dessas cidadezinhas do interior do meu nordeste, aqui eu quero lhe apresentar duas figuras pertencentes a alta escala social da cidade uma por ser culta o outro por ser rico. A professora Mariquinha, moça prendada, culta, direita, educadíssima, conhecida até na capital por sua desenvoltura, pertencente a uma família tradicional na redondeza, era sobrinha do coronel Valderico Bezerra, já foi até no estrangeiro, diziam...eu nunca vi, mas...Vivia com sua mãe, numa casa em frente a praça. Quando a mãe faleceu, continuou a morar sozinha com a companhia apenas de dois gatos a quem tratava de filhinhos.

O outro personagem é João Duca, caboclo grosseiro, de maus modos, só sabia assinar o nome. Fez fortuna plantando e vendendo algodão; comprou uma casa em frente a praça aonde vivia com a mãe, e continuou vivendo sozinho após o falecimento dela. Era feio o coitado. Alto, gordo, a barba sempre por fazer, os dentes escuros do cigarro de palha, vestia-se tão mal, que ninguém dava conta quando ele mudava a roupa, pois era sempre calça marrom e a camisa branca amarelada e amassada com um botão aberto na barriga. Nunca o vi de sapatos. Usava aquele chinelo de couro fedido comprado na feira.

Um belo dia, a professora Mariquinha já com os seus quarenta e tantos, começou a enxergar João Duca com outros olhos. O tempo passava, e a moça já nos sonhos de Balzac, começa a encarar a solidão como uma tsunami que se aproxima da sua vida e ela que era tão acostumada a ser paparicada na cidade, nunca havia sequer namorado alguém, os rapazes não se achavam bons para ela e ela por sua vez, achava que ali, ninguém estava a sua altura. Restava João Duca, seu vizinho, na casa dos cinqüenta, rico, solteiro porque nunca se deu ao trabalho de procurar moça pra casar, não queria dividir o dinheiro que ganhava com o algodão. Tava muito bem assim. –Se eu quizé muié, vou vou pro cheba- era o que dizia.

Mas Mariquinha com seu medo da solidão, resolveu investir. –Ensino a ler, escrever, compro umas roupas descentes, levo no dentista e ele será um novo homem. Resolveu pedir ajuda a dona Severina de seu Leitão, que fornecia marmita para ele, afim de incutir-lhe essa idéia na cabeça: Casar com Mariquinha.

-Tai veno que Mariquinha num vai querer eu, dona Sivirina. A moça tem inté nome de iscola . Eu já tou muito veio mode casá!

-Claro que vai, seu João eu sei de fonte certinha que ela é doidinha pelo sinhô.

-Mai será? Danou-se! Dixe que essa moça num quis ninguém daqui...

-Vai que já era apaixonada pelo sinhô.

E o bichinho ficou na cabeça de João remoendo, até que um belo dia não agüentando mais, tomou um banho, parelha de roupa limpa, foi na casa de Mariquinha.

- Dona Mariquinha!(chamou na entrada)A moça estremeceu: -É ele, pois o diabo do homem não veio atrás de mim? Pensou...

-Pois não, seu João? Quer entrar?

-Não sinhora, premero eu quero lhe fazer uma pregunta: A sinhora qué namorá mais eu?

-Seu João, o senhor me pergunta isso assim de supetão?

-Tem outo jeito de preguntá? Eu sei qui sou um cabra rude, bronco mermo, num sabe, mai de repente, minha burrice cum sua finura, pode inté colá.

- Entre um pouquinho, seu João, vou buscar um suquinho...

-Carece não, a mais tarde eu tomo um café mode pitar meu fumo. Mai vou entrano.

-Seu João, eu tenho uma reputação a zelar, comigo a coisa tem que ser séria, já não sou mais uma mocinha, apesar de me sentir como uma...

-Tombém já tou veio e num tava precurano não, mai a sinhora tá só e seno seu vizinho, é mai fáci, nois só puxa as cadera e namora na carçada , He He He...

- Posso pensar (quis fazer um charminho, Mariquinha)?

-Se a sinhora acha qui ainda tá na idade de perdê tempo!

-Ta certo, então, eu aceito, mas saiba que eu sou mulher pra casar, viu seu João?

- Entonce tire o “seu”, chame eu só João.

Combinados, acertaram para namorar todos as noites na calçada da casa dela. João chegou no outro dia, deu boa noite e sentou-se. Mariquinha , sentada a seu lado, tentava puxar assunto ao que ele respondia:- “hum hum” e pitava seu cigarro fedorento quase embebedando a donzela. Foi assim por dez longas noites...Todo mundo na cidade já sabia do namoro. Prato esborrotando para as “candinhas” de plantão. Todo mundo ia à praça pastorar o namoro de João Duca e Mariquinha, até o padre teve curiosidade e no domingo depois da missa, foi visitar os dois.

-Boa noite! Vim fazer uma visitinha!

-Bas noite, pade, qué se abancar?

-Vou buscar uma cadeirinha, padre, volto já!

- Então, seu João, como Mariquinha é uma moça sozinha, vim aqui saber das suas intenções, não quero que na minha paróquia uma moça da qualidade dela fique mal falada.

-Se dé tudo certo, nói casa.

Volta Mariquinha com a cadeira- sente-se Padre.

-Então Mariquinha eu estava dizendo aqui para o seu namorado...

Nisso, João Duca levanta uma perna e...pppuuuuuummmm

-O que foi isso, João? Pergunta a moça indignada!

-O que mai iria ser? Uma bufa, ara.

-Levante-se já daqui e vá embora, velho descarado. Quem já viu uma presepada dessas na minha frente e na frente do padre? Tá tudo acabado! Eu aceito tudo, menos falta de educação.Esbravejou Mariquinha vermelha de vergonha.

-Oxente, o qui foi que eu fiz? Tudo isso mode um peido? Vai que nem a sinhora e nem o pade tem cu não, é? Ara, dane-se voceis tudim, que eu mermo num vou casá cum uma muié que num agüenta um peido!

Foi embora e nunca mais voltou. Mariquinha morreu donzela. Um mês depois, morreu João Duca. Para desespero dos dois, estão enterrados lado a lado no campo santo do lugar. Entre os dois túmulos tem uma placa de madeira aonde um gaiato escreveu:

”Que peido nenhum separe o que dona Sivirina uniu”