Roxinha
A hora de deixar a cama para a lida diária era anunciada bem antes do nascer do sol, pela latomia das aves. Os ouvidos era o sentido que acordava primeiro. O galo, quando previa que a aurora se aproximava, soltava seu canto e era seguido pelo coro formado pelos galos da vizinhança, depois vinham os curicacões, as saracuras três potes, os sabiás e tantos outros que habitavam daquele brejo.
De olhos ainda fechados, conseguiu distinguir em meio ao sonoro amanhecer o berrar dos bezerros apartados chamando suas mães. Era hora de se levantar, as vacas têm hora certa para a ordenha, qualquer descumprimento de horário, resultaria na míngua do leite. De um pulo, jogou suas cobertas quentinhas para o lado e colocou os pés no chão frio do quarto.
O café recém coado e o biscoitinho de polvilho frito já o esperavam na mesa. A esposa zelosa, não deixava o marido sair sem um tira-jejum. Mas antes de tudo era preciso acordar os meninos. Despertava-os dando-lhes uma apertada de leve no nariz. Nunca soube se acordavam pela falta de ar, ou se era o barulho da gargalhada paternal, que por fim, acordava a casa inteira.
Enquanto tomava seu café e lembrou a esposa da difícil missão que os esperava: Roxinha havia parido durante a noite.
Roxinha era a vaca mais velha do curral. Era enorme, de cor marrom e com um perfeito par de chifres. Mais da metade do rebanho descendia dela. Tinha filhos, netos, bisnetos e até tataraneto. Era mansa que fazia até dó. Era nela que os meninos aprenderam a tirar o leite. Tinha umas tetas molinhas, que jorravam tanto leite que quase enchia o latão. E era dela o leite que criou os meninos, assim que largaram o peito da mãe. Era uma vaca muito dócil, só que no dia em que paria, Roxinha não era só uma mãe ciumenta, tinha uma brabeza inexplicável. Até colocá-la no curral, devidamente peada, era a vaca que mais dava trabalho.
O pai havia se precavido, na noite anterior separou-a das demais, em um cercado perto do açude. Os meninos, de café tomado, já estavam apostos, ansiosos para enfrentá-la. Mas o pai, com toda calma do mundo, preferiu primeiro tirar o leite das outras. Com o curral vazio ficaria mais fácil lidar com a vaca recém parida.
Terminada a tarefa, seguiu o comboio. O pai a pé de laço em punho, acompanhado por dois cachorros e os meninos na carroça, recém arreada para transportar a cria do pasto para o curral.
Perto da cerca avistaram só a vaca. O pai já havia previsto isso. Roxinha havia escondido a cria. Antes que os meninos perguntassem alguma coisa, elei se agachou na sombra da carroça, arrancou o canivete, começou a trabalhar em um cigarro de palha, e balbuciou:
-Vamo esperá Roxinha mostrar o esconderijo, a cria tem que mamar. Nós tudo não precisa ficar aqui, eu vou lá tratar dos porco, e ocêis fica com o zóio grudado nela.
O pai se levantou soltando um trago. Os dois meninos ficaram lá. Colocaram a carroça na sombra e vigiaram, meio escondidos. Não tiveram que esperar muito. Bastou um berro da mãe para cria sair saltitando de uma das muitas moitas que circundavam o açude. Era uma linda bezerrinha, muito parecida com a mãe. Chamaram o pai, e foram buscar a vaca com a sua cria.
Foi só avistar a carroça destinada ao resgate, que Roxinha se transformou. Deu uma bufada e levantou a cabeça. Seus olhos pareciam de um animal possuído. O cavalo que puxava a carroça não tinha medo da vaca, seguiu até onde o condutor mandou. Com uma vara comprida, o pai a cutucava, no intuito de afastar a mãe da filha, enquanto os meninos tentavam colocar a carroça entre elas. Depois de muitos gritos, latidos, berros, chifradas e cabeçadas, conseguiram tirar a vaca de perto da cria. Enquanto Roxinha corria trás dos cachorros, os meninos furtivamente pegaram a bezerrinha nos braços e a colocaram na carroça. Subiram rapidamente e a carroça de trote marchou em direção ao curral. Quando a vaca conseguiu se livrar da cachorrada, se lembrou da cria e partiu a galope seguindo seus instintos.
Enquanto um guiava, os outros dois, cada um com um pau, tentavam manter Roxinha afastada da carroça até a entrada do curral.
Entraram, fecharam a porteira. Do lado de fora, Roxinha aflita bufava sem parar.. Lá de dentro da casa, podia-se ver através da janela outra mãe aflita, que rezava o credo, ajudada pelos filhos menores.
Depois de curar o umbigo da bezerrinha, o pai abriu a porteira e deixou que a fera entrasse. Quando ela cheirou a cria, soltou um ultimo bufado e abaixou a cabeça. O pai percebeu que o trabalho tinha chegado ao fim. Roxinha tinha voltado a ser a vaca dócil de sempre.
O pai chamou a família para ver a bela cria de Roxinha. Todos entraram no curral. As crianças menores não perderam a oportunidade, alisaram com as mãozinhas tanto a filha, como a mãe.
O pai repetiu o que todo mundo já sabia:
- Essa vaca já tá veia, mas é uma veia enxuta. Ainda vai ter muitas cria. Vai aposentar aqui, e morrrer de veíce. Nunca vou vender ela.
Mas não foi de velhice que Roxinha morreu.
Alguns dias depois, o pai quase perdeu a hora de tirar o leite, teve a impressão de não ter ouvido o galo cantar, e até o sabiá que tinha um ninho perto de sua janela, estava calado. Já na cozinha, brincou com a esposa:
- Os cantor tá de greve hoje?
- Não brinca, minha mãe dizia que quando os bicho não canta é porque tão triste por causa de alguma coisa que vai acontecer. Respondeu.
Nem deu tempo para o café, o pai suguiu para o curral. Quando fechou o gado deu por falta de Roxinha. Isso nunca tinha acontecido, ela sempre ficava por perto. Mandou um dos filhos procurá-la. Pouco tempo depois quando o menino a trouxe, o pai notou que Roxinha estava mancando. Bravo, perguntou ao filho:
- Menino, ocê jogou pedra nela?
Claro que não havia jogado, os meninos apesar de ainda moleques, eram muito responsáveis. O pai se aproximou e foi examinar. Não viu nada, mas achou melhor deixá-la fechada até mais tarde.
O pai foi cuidar dos seus afazeres, quando retornou ao curral, Roxinha estava deitada, ele se aproximou e notou um inchaço em sua pata traseira. Examinou mais uma vez e viu. O pai tremeu ao perceber duas marcas bem finas de mais ou menos dois dedos de distancia uma da outra, em uma de suas patas traseiras. Era cobra, e pelo formato da picada, era cascavel. Só um milagre poderia salvar a pobre vaca. O pai meio atordoado, deu a notícia a esposa. Ela já correu para o altar que ficava na sala, acendeu uma vela, rezou e fez uma promessa a São Bento. Se Roxinha se salvasse ia dar sua próxima cria para o Santo.O pai pegou seu cavalo e saiu em disparada.
Na vizinhança havia um benzedor que havia herdado de sua mãe a sabedoria do benzimento, era a única esperança para Roxinha. Se alguém, ou algum animal fosse picado por alguma cobra, o jeito era apelar para a fé. A primeira coisa a fazer era prometer alguma coisa para São bento, e a segunda, procurar um benzedor.
Quando o pai ia chamar pelo benzedor, já em frente de sua casa, ele já havia aparecido na janela, e já sabia o motivo da visita. O pai imaginou que o suor do cavalo havia deletado a pressa, mas a sabedoria do homem ia bem mais longe. Apeou do cavalo e pediu benção, de dentro da casa, o benzedor respondeu:
- Deus te abençoe, meu filho. Sei que o motivo da visita não é cortesia, e sei também que o sofrimento já cessou. Isso não mais carece de benzimento. Mas posso benzer a causadora de tudo. E você pode escolher, quer que ela apareça ou quer que ela vá para bem longe. A escolha é sua.
O pai entendeu. Já não tinha mais jeito para Roxinha, pelo tamanho e forma da cicatriz a cobra era muito grande e tinha pegado de jeito, com as duas presas, o veneno foi letal. Sentiu as tripas remexerem, não podia deixar se abater, tinha que voltar e cuidar de tudo, e ainda poderia matar a cobra. Pediu que o benzimento fizesse a danada da cascavel aparecer em um lugar bem limpo, e assim poderia acabar com ela, antes que fizesse mais vítimas.
O pai agradeceu, e voltou da mesma toada que veio.
Lá da estrada, quando avistou o curral, confirmou tudo. Roxinha já não tinha mais vida.
Na casa, era só choro. A meninada toda tinha abrido o berreiro. Sua mulher com cara de choro, disse que antes de morrer Roxinha berrou desesperadamente, e que sua cria respondeu como se tivesse se despedindo. O pai, segurando para não demonstrar suas emoções, engoliu seco, e disse:
- Temo que enterrar ela. Não podemo deixar os urubu comer quem deu tanto pra nois.
Pegou umas ferramentas, e cavou ali por perto do curral mesmo, uma cova bem funda. Com a carroça, arrastaram o corpo até lá. Agora as marcas da picada letal estavam mais evidentes, mesmo assim continuavam a ser insignificantes, comparadas ao tamanho da Roxinha.
A bezerrinha agora teria que ser criada na mamadeira. O pai já tinha um bico improvisado de couro macio, que após ser colocado em uma garrafa de leite, iria acudir a fome da pequena órfã. Após muitos dias, os meninos ainda faziam fila para verem a bezerrinha mamar na mamadeira improvisada. O pai disse que ia dar tratamento especial a ela, para que um dia pudesse substituir a mãe. E todos concordaram a respeito do nome, seria Roxinha.
Estavam todos no curral, entretidos com a bezerrinha. O galo e algumas frangotas com quem ele andava de namorico, passavam na frente da casa, bem no terreiro que a esposa varria todo dia de manhã. Desconjuraram, esticando o pescoço e deram o alarme. Quando ouviram, todos já sabiam. Era a cobra que o benzedor tinha mandado para que eles pudessem matá-la. Cobra benzida fica meio boba, mansa até demais, mas melhor não facilitar, o pai pegou um pau bem comprido e foi até lá. De cima da cerca do curral, a família pode ver a cena, e pode ouvir o barulho do chocalho do bicho. O pai deu algumas pauladas e depois macetou a cabeça. Com o pau levantou a assassina: uma cascavel de quase metro e meio, com um chocalho de 15 gomos, que ele cortou para guardar. A cobra tinha aparecido bem no limpo, durante o dia, e não deu nenhuma evidencia de querer fugir. O pai enterrou o bicho perto da cova de Roxinha, pois era perigoso deixá-lo morto em qualquer lugar. Pois os ossos depois de um tempo viravam espinho de cobra e se alguém se espinhasse, podia se envenenar.
Roxinha, a filha, mamou na mamadeira até aprender a comer no cocho.
Tempos depois, a bezerrinha tornou-se uma linda vaca, muito mansa, pois desde pequena se acostumou com as crianças sempre por perto. Só quando pariu a primeira cria, se deram conta que a filha tinha realmente herdado tudo da mãe.