Cada qual com seu igual -Quase uma historia de amor

CADA QUAL COM SEU IGUAL

- Oxente, mainha, me digue, pruque meus irmão é tudo branco e eu sou dessa Cô?

- Que cô, minina, dexe de lorota e de pregunta difíci, eu lá seio pruque deus fes tu tostadinha assim, já num abasta teu pai me infernizar com isso?

- E ele inferniza, é? Ele tombem num sabe não?Quem é qui sabe intão?

- Quano nois for na cidade, vou mais tu na maternidde qui tu nasceu, mode vê se o douto qui butou tu no mundo sabe. Agora pare de pregunta e vá apanhá a roupa na corda qui já deve de tá seca.

Era esse mesmo lenga- lenga vez por outra. A Rosa ia para a escola rural a contragosto, lá toda criançada lhe evidenciava a diferença. Seus dois irmãos Celso e Isnaldo eram loirinhos sararás, olhos claros, feições finas, muito parecidos com a mãe. Tem respectivamente 12 e 13 anos e são os primeiros a atormentar a irmã com essa conversa de tostada.

Tem dez anos, Rosa, tez morena, lábios grossos, o cabelo preto e cacheado enfeita-lhe os ombros como águas que bamboleiam nas cascatas, os olhos negros, vivos, curiosos parecem espreitar a alma das pessoas em busca dessa resposta angustiante...Pruque?

A mãe sempre fora moça da roça, se chama Maria, sei lá de que, acho que ninguém nunca soube, conheceu o marido Cícero( seu Cilso) quando ainda cheirava a terra molhada na flor dos seus quinze anos. Foi viver com ele por amor, só casou no cartório, quando Celso nasceu. Trabalhavam e moravam num pedacinho de terra adquirido por Cilso antes do casamento; Lá ele construiu uma casinha, plantava feijão, milho, batata doce e macaxeira, faziam farinha e criavam uma vaquinha pro leite das crianças.

Maria sempre foi muito recatada, calada, não lia nem escrevia e seu sonho era ver os filhos terminarem o primário, quiçá inté o ginásio, dizia. Seu Cilso sempre foi mais falante, tinha estudado até o quarto ano primário, votava, assinava o nome, gostava de prosear com os amigos, mas desde o nascimento de Rosa estava trancado. Afastou-se dos amigos, passou a consumir pinga depois da feira no sábado, quase sempre voltava triscado pra casa, raramente procurava dona Maria para lhe agasalhar os pés e nunca, mas nunca mesmo, conseguia olhar nos olhos da filha. Em alguns momento de ebriedade até chegou a questionar com a esposa o porque da filha ser tão diferente, ao mesmo tempo, amava Maria e no fundo do seu coração, sabia que ela não lhe tinha sido infiel. Mas os amigos não perdoam. Vez por outra na mesa do buteco, algum soltava uma loa do tipo: Cilso, teu sogro é preto? Ou aquela tua menina parece mais cum a famia de Zé machante do que cum tu. Ele engolia, cuspia, se retirava e não respondia nada, até uma sexta feira de abril...

- Maria, menhã tu vai pra rua mais eu e leva Rosa, os minino fica. Noi vamo sabê na maternidade qui é que ouve cum essa minina pra ela ficar dessa cor qui num é a nossa.

- Vamo é perdê tempo, Cilso, tai veno qui essa minina num tem nada dimais?

- Menhã nóis sabe. Se apronte cedo que nois vamo de jardinera .

Na manhã seguinte, saem os três. A coitada da Rosa ainda sonolenta, estava feliz em ir a feira com os pais, a mãe apreensiva e o pai obstinado em resolver o dilema. Primeira viagem, a feira, despacharam o de vender, compraram o de comer, uma benção na igreja de Santana e a maternidade.

-Dia, falou Cilso, o doutor Valdi tá aqui?

-Tá sim senhor, ele vem no sábado para atender o povo da zona rural.

-Nois quer falar cum ele, é pussíve?

-É consulta, é? Porque se for, só particular que já preencheu pelo SUS.

-Não sinhora, é uma cunversa mermo.

-Então vocês esperem que quando terminar a última consulta ele atende. A moça já estava acostumada. Todo sábado tinha uma família lá para convidar dr. Valdir pra isso ou aquilo.

Duas horas depois...

-Pode entrar nessa salinha aí.

-Dia doto, disse Cilso tirando o chapéu, adiscurpa incomodá, mai o sinhô é a única pessoa desse mundo que pode isclarecer a nóis o pruque da nossa fia sê tão diferente dos irmão e de nóis, visto que o sinhô tirou ela de dento de Maria.

Cícero proferiu as palavras de uma vez, como quem vomita, depois deu um longo suspiro de alívio, como se tivesse empurrado pra fora dez anos de angústia.

-Seu Cícero,retrucou o médico, sente-se criatura, acomode-se dona Marias e acalme-se, pois se eu me lembro bem, e eu acho que eu me lembro devido o inusitado do caso, o sua filha nasceu em óbito,quer dizer morta, e a enfermeira Cleide ficou de avisar vocês porque eu tive que fazer outro parto em seguida, cuja parturiente, infelizmente veio a falecer também.Vamos chamar ela aqui, que por sinal está de plantão, é a única que sabe de tudo.

O médico mandou chamar a enfermeira Cleide que quando adentrou o consultório e viu Maria, ficou pálida.Chegou até a ensaiar um princípio de desmaio, socorrida e inquirida pelo médico, deu a seguinte explicação:

-Não fiz por mal, doutor. Uma perdeu a filha e a outra perdeu a mãe na mesma hora. Coloquei morta do lado de morta e viva do lado de viva. Nunca disse nada a ninguém pois eu sabia que a moça que morreu era mãe solteira, os pais nem sabiam dessa gravidez dela, tanto que faleceu, pois nem o pré natal ela fez. Achei justo que uma família criasse a bichinha e assim ninguém sofria.

- E agora seu Cícero, o que vamos fazer? O senhor está no seu direito de processar dona Cleide por ter trocado as crianças e de procurar na verdadeira família da menina para entregá-la

A coitada da Rosinha tremia que nem vara verde abraçada com a mãe que também tremia .O mistério fora desfeito num segundo e a menina viu sua vidinha toda desmoronar. E agora? O que iriam fazer com ela?

- Nada, doto, falou Cícero quase com um sorriso nos lábios, vou fazer nada não, eu num vou dizê qui gostei de sê inganado esse tempo todo, mai a Rosa é fia minha derna daquele dia, preta ou branca ela é fia minha eu to mermo é aliviado mode saber qui ela é fia de criação, apois inté meus miolo aqui, chegaro a pensa umas bestera. Vou fazê nada não, agora pelo meno, eu tenho cuma arrespondê a esse bando de fofoquero dessa cidade. Vambora Maria, muito agradecido doto e a sinhora, dona Creide, fei certo, nois ia sofrê munto mai se num tivesse Rosa.

Sabedoria nordestina, pensou o médico, será que algum juiz agiria melhor?

Saíram da maternidade. Chorava Maria abraçada à menina, Cícero parou na porta, abraçou Maria, e pela primeira vez mergulhou no olhar molhado de Rosinha...

- Minha Fia!Tu é MINHA FIA, vice? E foram embora segurando a mão de Rosinha.