As botinas do marido defunto
Como estava dizendo, dona Alzira, há anos atrás, lavava roupas em casa de meus pais. Nesse tempo, a roupa toda da casa era lavada a mão e passava por muitos processos para ficar limpa, anilada e engomada. Um deles era estender a roupa no chão para quarar. Os jovens de hoje precisam do dicionário para saber o que é isso.
No tempo de férias escolares, quando levava roupas lá de casa, dona Alzira precisava mais ainda ativar seu repertório de causos acontecidos ou não, pois era muita criança passando pra lá, pra cá no terreiro e ela ficava na maior ojeriza. Os meninos pisavam ns roupas e ela tinha de enxágua-las e colocá-las de novo pra quarar. Uma campanha! E lá vem mais um causo!... Não sei se ela chegava a notar que as crianças passavam por cima das roupas já imaginando que haveria contação de causos. Ao primeiro sinal dela, todos se sentavam nos degraus da escada e esperavam. Já falei sobre isso? Faz mal não. Tem gente que não leu nem o começo do causo da semana passada.
“Hoje vou contar um causo acontecido. Já contei das botinas de meu finado? Vocês não precisam ficar assustados. Esse causo aconteceu foi comigo.” Após dizer isso, ela dava uma gargalhada, he... he... he... Tirava a trouxa de fumo da boca, embolava o paninho e a guardava por debaixo do avental. Então, dava aquela cuspida comprida e mais uma risada boa. He... he... he...
“Uma tarde, lá na Onça, cheguei cansada da lida da roça. Eu andava dasacoçoada, os filhos todos pequenos e tinha perdido meu marido, um companheirão. Passava poucos dias, dois ou três, que eu havia enterrado o marido e toda hora eu destampava a chorar. Nessa noite, depois que os meninos já estavam todos no catre, ferrados no sono, eu tomei um susto danado. Eu podia jurar, de pés juntos, que o marido havia sido enterrado com as botinas.... E não é que as botinas dele me apareciam ali debaixo do catre, do lado do penico? Deus do céu. O falecido havia falado, vida inteira, que queria ser enterrado com as botinas, quem sabe, pra onde ia, podia precisar delas. E eu? Nem havia reparado que ele não tinha ido sem elas.... Lembro que, no dia seguinte ao enterro, eu havia juntado as tralhas dele todas, uma meia dúzia de peças de roupas, que a gente era pobre, umas ferramentas e pus tudo lá debaixo da coberta pra depois dar uma destinação. O terno, eu sabia, o mesmo do casamento, ele havia ido com ele no caixão. Mas as botinas! Não havia posto reparo nisso. Lembro que até juntei os papéis dele e pus numa caixa que sempre ficava debaixo da cama. Lembro que vi só o penico lá debaixo, quando enfiei a caixa. Mais nada. E me aparece esse par de botinas, depois de o homem estar bem enterrado?
Fiquei com aquela coisa na cabeça. Depois do aparecimento das botinas, não falei disso com ninguém, trabalhei na roça uns dois dias, no maior desassossego. O finado não era de clamar por nada. A única coisa que ele havia pedido na vida era para sua hora de enterrar. Queria ir com as botinas. Com efeito! Fui eu me esquecer logo disso! A terceira noite passei matutando. Carecia fazer um reparo. Um homem bom como aquele. De coisa de ruim que me fez, foi morrer tão cedo, me deixando os três meninos pequenos pra criar.
Quando as galinhas começaram a cantar no terreiro, levantei, que não havia dormido mesmo, coei um café ralinho pros meninos, passei a mão no par de botinas do finado. Tomei cuidado pros meninos não acordarem e rumei pro cemitério. Era cedo, o portão ainda estava fechado. Passei por debaixo da cerca de arame. Fiz o nome do pai e o sinal da cruz perto da capela e caminhei até a cova do finado. Chegando lá, vi que as flores do enterro nem estavam muito murchas e a terra ainda estava fofa por cima da cova. Fiz umas preces, me benzi, pedi a ele perdão e deixei lá por cima as botinas, que não podia desenterrar o morto.
Cheguei em casa e os meninos nem haviam acordado. Fiz as tarefas que tinha que fazer antes de ir pra a roça e falei com a minha irmã que morava do lado, que já estava indo e que o café já estava pronto, que ela podia beber e dar pros meninos antes da escola. Bom. Fui tratar das lidas da roça. O tempo estava muito quente, me alembro. Depois, o céu foi ficando escuro, veio uma ventania, com trovão e raio. Caiu uma chuvarada mesmo. Cheguei em casa, de tarde, molhada que só vendo. Cuidei dos meninos, dei banho, fiz uma sopa de batatinha com um pedacinho de carne que havia ganhado nesse dia. A chuva parou, mas a noite estava muito escura, o céu nuveado. Antes de ir para o quarto, o menino pequeno pediu pra deixar a lamparina acesa na mesa da cozinha que ele não gostava de muita escuridão. Achei até bom. Começamos a rezar o terço e não havia ainda chegado no terceiro mistério, já escutei o ressonar dos três. Acabei de rezar a salve-rainha encolhidinha no catre, junto com as meninas. Estava uma ventania danada, parecia que ia cair mais água. Então, mais uma surpresa. He... he... he...
O vento parou de soprar, ficou um silêncio danado. Nisso, escutei o rangido da tramela da porta da rua. Bom. Seria o menino que estava saindo? Não podia ser. Não havia escutado ele arrastar a cadeira e a tramela era no alto, difícil pra ele abrir. Me acomodei no catre com os ouvidos alertas. Vi que os três estavam no quarto. Nesse momento, ouvi um chio de botinas e umas passadas, do jeitinho que o finado caminhava. Não podia ser pesadelo, que eu nem havia pegado no sono. Ou podia? Se vocês estão se arrepiando, imaginem, eu! Fiquei gelada e quieta que nem estátua. Lembro que pude sentir o respiro de mais gente no quarto. Coisa que durou pra mais de cinco minutos. Nessa hora, puxei a coberta e tampei a cabeça. Que noite mais comprida foi aquela!
No amanhecer, na hora que as galinhas se puseram a cantar no terreiro, pulei do catre, passei uma água no rosto e fui fazer o café. Mexi os paus de lenha no fogão_ ainda bem que havia alguns secos, guardados na cozinha. Enrolei uns biscoitos de polvilho pra fritar pros meninos. Bom. O café ficou pronto. Enchi uma caneca e sentei no banco pra fazer minha trouxa de fumo. Quando acabei de sentar, olhei pra dentro do quarto e arregalei os olhos. Dali do banco da cozinha, dava pra ver as meninas dormindo. Quando passei os olhos debaixo do catre, vi que havia alguma coisa do lado do penico. Deus! As botinas! As mesmas do marido falecido. Nessa hora fiquei meio duvidando, se havia pegado no sono e sonhado com aquilo tudo, se havia mesmo deixado as botinas em cima da cova dele. Podia ser. Eu andava tão desacoçoada, de pouco sono, com saudade do finado. Bom. Os meninos acordaram, o dia ficou mais claro e era hora de sair pro trabalho.
Então, fui lá no quarto e sentei na beirada da cama pra ajeitar meu coque, que os cabelos estavam despencando. Os meninos comiam os biscoitos que havia fritado. Ao dar uma olhada na direção da porta da rua, gelei. O corpo inteiro estremeceu. De lá da porta da rua até nas botinas, que estavam debaixo da cama, havia umas pegadas de barro. Lembram que falei com vocês da chuva? Pois é. A cor do barro daquelas pegadas era a mesma da terra vermelha lá do cemitério. He... he... he…”
(Dedico este causo ao meu irmão Geraldo, que me ajudou na lembrança)