Chico Preá e a Herança

O Chico Preá e a Herança

Thereza de Lima

Naqueles idos de 1960, em uma pequena cidade do interior do nordeste chamada Mata Seca, a criminalidade ainda brincava de bonecas, mas na pequena cadeia pública que só possuía uma cela, um soldado e o delegado, solitário residia Chico Preá, cujo crime consistia em afanar galinhas das propriedades rurais, para torná-las acompanhantes de pinga, devidamente vestidas de cabidela. Vivia sendo preso. Soltavam, roubava, comia o produto do roubo e voltava a dormir guardado. Não sabia ler nem escrever ,, sem família aparente, não tinha companhia feminina desde...desde sempre, emprego, nem pensar, só alguns dentes na boca e para completar o quadro, era feio de doer, mas todo mundo na cidade gostava dele porque era prestativo, fazia favores a um e outro, sempre lhe tinham atenção!

Certo dia escaldante de maio, apareceu em Mata Seca um sujeito esquelético, vestido como um “crente”(ou cantador de viola, como queiram), óculos de aro, bigodinho, a calça pega bode muito amassada insinuava que a viagem havia sido longa, montado num “jeep” semi novo 1958 e parou em frente a prefeitura, desceu do automóvel e foi entrando na intendência municipal.

-Posso falar com a autoridade da cidade o Sr. Prefeito? Perguntou à Maria Barroca, secretária que só trabalhava até meio dia, juntamente com toda a coorporação municipal.Faço aqui um aparte para descrever Maria Barroca. Na realidade, se chamava Maria Sulamita, Barroca era seu pai, e ela herdou o apelido. Tinha mais ou menos 35 anos,ninguém sabia ao certo, mas era ainda moça de boa aparência, ancas redondas, pernas roliças, o cabelo sempre preso num coque, para incutir seriedade aos visitantes raríssimos da prefeitura.

Quando avistou a figura do visitante, levantou-se solícita:

-Quem deseja, senhor?

-Washington Rubião de Sena, ao seu dispor.

-Espere um bocadinho que eu vou anunciar, seu...Uóchitom(foi escrevendo num papel para não esquecer.

Diante de tal visitante, imediatamente o prefeito mandou entrar...Era um homem calvo, de seus 55 anos, já havia sido vereador por 3 vezes, além de ser o único padeiro da cidade. No gabinete do prefeito, o visitante apresentou-se novamente e disse que estava numa missão muito especial em Mata Seca, pois procurava um cidadão chamado Francisco Deodato da Luz e até aonde lhe constava, ele residia naquelas imediações.

- Vigi, angustiou-se o prefeito, nunca ouvi falar desse nome aqui não, mas porque vosmecê tá procurando ele?

-Esse senhor foi abandonado aqui por sua mãe há 40 anos. Ela não tinha como criá-lo. Deixou-o na porta de uma casa e foi embora para a capital. Lá chegando, foi trabalhar numa casa de recursos, como era uma cabrocha muito bem apessoada, logo encontrou alguém para lhe tirar daquela vida e casar com ela e quem fez isso foi um fazendeiro muito abastado,ela se chamava Maria Rita da Luz, casou com o coronel Juvino Tolentino Veloso, de quem nunca teve filhos, ficou viúva há 2 meses e agora quer o filho de volta, pois tem uma herança bem grande e não tem para quem deixar.

Diante desse relato, os olhos do prefeito brilharam.

-Herança, é? Então vamos procurar o homem. Dona Maria Barroca, chamou, procure nos arquivos da prefeitura um cidadão de bem chamado Francisco Deodato da Luz, se não achar, vá ao cartório, pergunte na rua, faça qualquer coisa, mas ache esse homem urgente.

E o Sr, seu Uóchintom, vai mais eu lá pra casa comer um pato gordo e esperar aparecer o felizardo.

Saíram os dois em busca do tal pato enquanto dona Maria Barroca iria encontrar o herdeiro.

Depois de uma longa busca em todos os arquivos, a eficiente secretária nada encontrou, o tal herdeiro, não constava na lista de títulos de eleitor arquivada na prefeitura. Foi então ao cartório e depois de muita busca, encontrou o registro de nascimento do tal Francisco, mas só constava o nome da mãe, criatura desconhecida na cidade, o homem, então... Já sei, brilharam os olhos de Maria atrás das lentes de 3 graus: Vamos perguntar a população se conhecem algum Francisco, ou Chico que é o apelido natural de quem tem esse nome.

Dito e feito. Saiu de casa em casa a procurar e nada.

-Só falta a igreja, o posto de saúde e a delegacia. Vou começar pela delegacia. E foi. Em lá chegando, foi entrando toda melindrosa, pois o delegado era um homem de meia idade, viúvo, com um filho já criado que morava na capital, portanto, era um dos poucos partidos da cidade capaz de amparar uma senhorita de família e casadoira como ela.

-Boa, seu Aprigio!

-Boa Dona Maria! Que novidade a senhora aqui, lhe roubaram algo, foi?Porque se foi eu mando já Joaquim de Lela (soldado) atrás do meliante.

-Nada disso não, seu Aprigio, eu estou fazendo uma pesquisa pra achar um cidadão de bem, rapaz muito bom e direito que vai receber uma herança, mas já procurei na cidade toda, e nada, só falta aqui e na igreja, mas a igreja está fechada, por isso eu vim saber se o senhor conhece algum Francisco Deodato a Luz.

-Quem???Vigi, a senhorita tem certeza que o nome é esse?

-Claro que tenho, pois não é que chegou um homem da capital, parece que é “adevogado”, cheio de papel, para achar o tal homem. Ele tá lá na casa do prefeito agora e eu me ofereci para achar o herdeiro.

-“Apois” a senhorita vai ter um troço, sabe quem é esse homem?É Chico Preá! O infeliz que vive bêbado, ladrão de galinhas, único inquilino aqui da minha delegacia.

-Ave Maria, seu Aprigio, não me diga!”Virge “do céu! E cadê o homem?

- Tá aqui agora não! Mandei ele ir no meu sítio buscar um pato que o prefeito me pediu, já deve de ter deixado lá há muito tempo e aproveitou a saída para tomar pinga por aí. Mais tarde ele aparece pra dormir.

-Home, mande seu Joaquim de Lela procurar ele, pelo amor de Deus. Esse homem vai ficar é rico.

Recomendado, o soldado partiu em busca de Chico pelos botecos. Encontrou o infeliz na casa de Lobinha, a cafetina da cidade, arrancando uns matos da calçada por uma garrafa de pinga.

-Bora, Chico, tão esperando tu na delegacia.

-Oxente! Que é queu fiz agora? Já deixei o pato na ca do prefeito e não tomei nem uma ainda, Quinca, “tou trabaiano”.

-Vambora, que parece que é negócio bom pra tu, rapaz.

-Oxe, Dona Lobinha, vou ter que ir na delegacia, mai eu vorto mode acabar o selviço e receber a paga.

Dona Maria esperava com o delegado tomando um cafezinho, fazendo uns denguinhos até que chega Chico já se defendendo:

-Tava fugido não delegado, tava lá em dona Lobinha trabaiano(repara na moça)oi, se robaro na prefeitura fui eu não, vice?

-Cala a boca Chico!Ninguém roubou nada não. É que apareceu um homem aqui dizendo que acharam tua mãe.

-Vote, eu nunca tive mãe, nem tava precurano!

-Mas ela “tava” procurando você. Ela mora na capital é uma viúva rica que não tem pra quem deixar a herança; falou Maria.

- E pra que diacho eu quero mãe e nem herança nessas artura da vida?

-Ora Chico, deixa de ser doido, retorquiu o delegado, então aparece uma mãe pra você, ainda nadando no dinheiro você rejeita? Vá tomar um banho já já,que o soldado vai buscar uma roupa dele pra você vestir e nós vamos na casa do prefeito ver o homem da capital. Avie, avie!

Muito a contragosto, lá foi Chico! Mais a contragosto ainda, trouxe Joaquin a parelha de roupa. Devidamente vestido, Chico mais Maria e o Delegado foram em busca da casa do prefeito.

Em lá chegando, Chico foi tratado como se fora o governador! Enquanto ouvia as explicações, foi servido de pato torrado e a melhor pinga da redondeza, exclusividade que o prefeito guardava para as visitas ilustres. O coitado nem acreditava, mas comeu e bebeu até se fartar.

- Então , Seu Francisco, argumentou o prefeito, o que tem a dizer depois de tudo que ouviu?

-Tem nada mode dizê não sinhô.O Pato tava bão, a pinga mio ainda, mas esse negóço de mãe e de herança, eu num quero não!

-Mas Chico!-gritaram todos, -está maluco? É dinheiro Homem de Deus!

-Chico, preste atenção, falou Maria, você vai ser um homem rico, respeitado, vai morar na capital, vai ter família. Como vai abandonar a sorte grande?

-Dona, fai mai de 40 ano que eu vivo aqui, nunca apareceu mãe, nem famía, nem nada. Abandonaro eu nos cuêro, nas porta dos outo, agora vem uma muié arrependida, quereno levar eu, dizeno que é minha mãe? Já viu mãe abandoná fio?E pra que é queu quero dinhero? Ela num deu amô a eu e agora que dá dinhero? Necessito não.Drumo na delegacia, como lá, ói, como inté na casa do prefeito, cunheço todo esse mundéu aqui, vou nada!Se essa muié fosse minha mãe mermo, eu era Francisco fio dela e não Chico preá, a sinhora num acha quela demorou dimais a precurá eu?Aqui todo mundo gosta deu, e lá? Sei lá Cuma vai ser.

-Mas Chico, tem uma herança pra você!

-E que é queu faço cum ela?Eu só guento uma garrafa de pinga por dia. Se a sinhora tá tão interessada, vá lá a sinhora, diga queu virei muié e agora trabaio na prefeitura!