ENTRE MONTANHAS E VALES

ENTRE MONTANHAS E VALES

Quando eu era ainda bem pequenina, já ouvia meus pais na varanda de casa, nas noites banhadas pelo luar, juntamente com seus compadres e vizinhos contarem este fato.

Diziam eles que, lá pelas bandas do Barreiro das Frutas existiam muitas assombrações, pois lá tinha sido o palco de diversas chacinas, devido ser o caminho em que os tropeiros e pioneiros utilizavam, para irem até Guarapuava, cidade mais próxima, a fim de trocarem mercadorias.

Levavam a rapadura, peles de animais curtidas e cereais.

Em troca, traziam o sal, as ferramentas que eram de grande utilidade na lavoura, os medicamentos básicos para o sertão, pares de calçados, com as sete vidas e as botinas, tecidos para as roupas da família, que eram feitos na velha máquina de costura a mão e alguns mimos para a esposa e filhos.

Há quem diga que já tinha visto por lá o boitatá, a mula sem cabeça, o lobisomem e muitas outras assombrações de causar arrepios.

Naquele lugar residia o senhor Olimpio, um fazendeiro abastado, com sua encantadora esposa, morena de olhos verdes como a esmeralda, prestimosa e muito fina nos tratos.

Era a senhora Guilhermina, mulher elegante, muito religiosa, nunca deixava de ir á missa e de cumprir com seus deveres assistenciais.

Respeitada por todos pela sua maneira de ser e de como criava seus filhos três e cuidava de seu esposo.

Seu Olímpio era considerado o líder da localidade. Culto, inteligente e cheio de bons modos e muita coerência, não media esforços para socorrer quem precisasse de ajuda.

Era também uma espécie de apaziguador das rixas e intrigas entre vizinhos, compadres e até posseiros. Com sua grande sabedoria, muita calma e poucas palavras, conseguia conciliar os fatos e solucionar as situações sem desfavorecer nem um lado nem o outro.

A casa grande onde viviam era toda de madeira, pintada com cal e tinha uma vasta varanda que a contornava, dando vistas aos fundos do quintal.

O cenário era belíssimo. Podia ser sentido o gostoso cheirinho do café recém coado no velho coador de pano e das broas de fubá ainda quentinha.

No fogão a lenha o fogo crepitava e nas panelas de ferro borbulhava o feijão tropeiro, o arroz e a galinha.

Ao lado, um grande varal de arame sustentava as carnes secas, os toucinhos e as lingüiças fabricadas pela família.

A dispensa abarrotada de rapaduras embrulhadas em palhas de milho, queijos, ovos, abóboras e muitas latas de carne de porco, fritas e conservadas na banha.

Na cozinha, além de uma grande mesa e dois enormes bancos para as refeições, havia uma linda cristaleira de imbuia, toda entalhada, que Guilhermina havia ganhado de sua mãe.

Nela estavam os belos cristais e as porcelanas portuguesa que ganhara de presente de casamento.

Na varanda dos fundos também tinha um varal com pencas de banana e embaixo, uma prateleira cheia de vidros de compota de frutas, de dar água na boca.

Nos fundos do quintal, passava um riacho cujas águas azuis e cristalinas desembocavam numa pequena cachoeira que abastecia o velho monjolo, que dia e noite trabalhava limpando o café, moia o milho, facilitando assim a vida da família e dos vizinhos.

Logo acima, o pomar enchia os olhos: bananas, laranjas, guabirobas do campo, amoreiras, goiabeiras faziam a festa da passarinhada que, em bandos gritavam estridentes, deliciando-se com tanta fartura.

Eram maritacas, araras multicoloridas, periquitos, beija-flor, sabiás e uma infinidade de outras espécies. Próximo a casa, um belo jardim, todo gramado e com flores miúdas e belas roseiras completavam aquele cenário.

Ao lado, junto à mina d’água, uma horta, com as mais variadas espécies de verduras e legumes.

Tudo era um esmero e capricho.

Guilhermina e seus filhos que cuidavam dos afazeres de casa, do quintal e tratavam da criação de porcos, marrecos, gansos, galinhas e vacas.

Seu Olímpio, sempre bem trajado, com sua camisa cinza claro e calça marrom, trazia no pescoço um lenço puxado para o vermelho e na cabeça o chapéu de couro preto, da marca Ramenzoni.

Calçava longas botas de couro que iam até o joelho, para proteger-se das cobras e de outros animais e insetos peçonhentos.

Montado em seu burro baio marchador percorria as terras cuidando do gado e orientando seus empregados, junto à bela plantação de café.

Aquele vale onde viviam mais parecia um paraíso todo cercado de montanhas azuis onde se via o nascer e o por do sol.

Tudo transcorria na mais perfeita harmonia.

Um dia, apareceu por aquelas bandas um jovem bem apanhado, cuja aparência fazia com que os olhos das mocinhas voltassem a ele, e seus corações pulsassem mais fortes.

Contudo, sempre que alguma delas se aproximava, ele sempre se afastava.

Foi chegando de mansinho, conquistando o apreço e a amizade do senhor Olímpio, de seus filhos e da dona Guilhermina.

O tempo foi passando e nada havia que desabonasse a conduta do jovem Justino, que já era considerado como parte daquela família.

Ganhou até um quarto no sótão da casa e sempre acompanhava seu Olímpio nas lidas da fazenda e também nas viagens.

Todas as noites, depois do banho e do saboroso jantar, tinham o hábito de sentarem-se na varanda da casa e ficar até altas horas conversando, saboreando seu chimarrão, tocando e cantando belíssimas cantigas sertanejas.

A vida seguia seu rumo, porém, seu Olimpio começou a notar que seu filho mais velho, o João, vinha apresentando atitudes estranhas ao seu comportamento.

Estava sempre irritado, arredio, sozinho pelos cantos, já não participava das prozas com a família.

Preocupado com o filho, conversou com sua esposa, que também estava aflita com a situação, pois o filho passou a evitá-la e ser ríspido com ela.

Muitas foram às tentativas de diálogo, porém João sempre dizia que não estava acontecendo nada, apenas queria ficar no seu canto, em paz.

O inverno se aproximava e estava chegando o dia de irem até Guarapuava para buscarem mantimentos para os próximos seis meses.

O tempo prometia que teriam um frio rigoroso, pois já começavam a sentir na pele o vento gelado.

Seu Olímpio reuniu a comitiva e acertaram partir no início da semana.

Como de costume, o filho caçula Jeremias ficaria com a mãe.

João e Joaquim iriam com ele.

À noitinha durante o jantar, o clima estava diferente.

Havia certa inquietação, e João pediu ao pai para ir até a casa de seu padrinho Juca, que ficava logo após a curva, na primeira venda.

Na véspera da partida, Justino comunicou que não poderia ir junto, pois tinha um negocio muito importante para resolver.

Virou-se, desejou boa noite a todos e dirigiu-se para seu quarto.

Ficou somente uma indagação no ar, porém ninguém tocou no assunto e foram todos dormir.

Amanheceu o dia. A tropa estava pronta, as mulas cargueiras todas carregadas e o povo em alvoroço, despediam-se dos seus prometendo um breve retorno.

De longe se podia ouvir o som do berrante e a algazarra da piãozada sertão a dentro.

A viagem transcorria normal, somente de vez em quando algum pássaro assustado voava ou algum animal atravessava o picadão.

A noite estava chegando e o frio aumentava.

Seu Olímpio decidiu que ali parariam para descansar.

Armaram suas barracas, acenderam o fogo e sobre a trempe pendurarão as panelas.

Alimentaram-se e ficou decidido que dois ficariam acordados para o revezamento, pois precisavam cuidar dos animais e da segurança dos demais. Todos procuravam se acomodar da melhor maneira possível.

Retiraram os pelegos dos animais para forrar o chão e cobriam-se com suas capas de lã.

Altas horas da noite ouviram um trote de animal e logo a seguir os tiros foram atingindo o seu Olímpio, seus dois filhos e o capataz João Maria.

Estava muito escuro e não dava para saber de onde vinham aquelas balas.

O medo e o pavor tomaram conta de todos, que procuravam se protegerem dos tiros.

Desesperados resolveram voltar, pois tinham quatro mortos e alguns feridos.

Chegaram ao amanhecer.

Todos ficaram desolados com tamanha tragédia.

Guilhermina, inconformada era consolada pelos vizinhos e recebia atenção especial do filho caçula Jeremias.

Chegou o inverno e com ele a geada destruiu todo o cafezal, a pastagem transformando aquele belo cenário num quadro acinzentado e sem vida.

A seguir surgiu uma grande seca, que atraia fogo em profusão.

O gado começou a morrer e as famílias a passarem necessidades.

O pequeno Jeremias, enfraquecido, caiu de cama, com anemia, perdendo a resistência, surgiram outras enfermidades que o levaram á morte.

Guilhermina, tomada pela dor e o desespero, insana passou a agir estranhamente.

Blasfemava, corria em disparada e todo o dia subia até a montanha, ficando lá parada por longo tempo, olhando para o além.

Todos procuravam ajudá-la, cercando-a de cuidados, até a sinhá Anastácia passou a morar com ela, mas nada lhe dava ânimo.

Médicos vinham tratá-la, porém sem nenhum resultado.

Era a tristeza que estava acabando com ela.

Até seus familiares vieram da capital para levá-la com eles, mas ela dizia que seu lugar era ali.

Certo dia, quando estava subindo ás montanhas, deparou-se com Justino.Ficaram por algum tempo conversando, sendo observados pelo compadre Juca.

Derrepente, Guilhermina sente-se observada, vira-se e é longamente fitada por Juca, que balança a cabeça e sai arrastando os pés devagarzinho nos pedregulhos do caminho.

Guilhermina da um grito e sai em disparada montanha acima, jogando-se logo a seguir lá do alto.

Todos ficam desolados com tão brutal tragédia, porém o velho Juca, apenas olha aquele corpo inerte sobre a mesa e sussurra:

-“Eu jurei compadre Olímpio, pelo senhor e pelos seus filhos, que faria justiça; porém não foi preciso. Deus se encarregou dela”.

Daquele dia em diante, nunca mais se ouviu falar do Justino e nem do seu paradeiro.

Sabe-se apenas que o velho Juca conhecia toda a história e não se cansava de contá-la: Seu afilhado João o havia procurado na noite anterior a chacina e lhe contado que havia visto várias vezes sua mãe sair do quarto de Justino.

Disse também que eles desconfiavam que ele soubesse, e o Justino o ameaçava caso ele contasse.

Comentou ao padrinho que durante a viagem iria contar tudo ao seu pai.

Justino, acuado, resolveu exterminar pai e filhos.

Em sua fuga, esqueceu uma carta onde relatava a sua mãe que havia encontrado seu pai Olímpio e que não suportava ver tanta felicidade.

Era um filho bastardo, que resolveu conquistar a bela Guilhermina para vingar-se do pai que nem ao menos sabia da sua existência, pois havia tido um caso com sua mãe, quando ainda era solteiro, mas acabou apaixonando-se por Guilhermina e deu fim em toda a família.

Aquele vale cercado por montanhas azuis, hoje é apenas um monte de morros, totalmente abandonado.

Quem se arrisca a passar por lá, sente calafrios, e há quem diga que até ouvem o vento uivar, com se fossem os lamentos da Guilhermina.

Edina Simionato
Enviado por Edina Simionato em 07/04/2011
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